O feminismo islâmico e suas particularidades

Em trabalho inédito, pesquisadora fala sobre a luta das mulheres no islã e as rupturas que elas propõem

(Por Carolina Unzelte)

Por Ingrid Luisa

A luta por direitos das mulheres continua a crescer com o feminismo. Na busca de maior espaço dentro da sociedade, se engana quem acha que essas são bandeiras exigidas só por mulheres ocidentais. A pesquisadora do Grupo de Trabalho Oriente Médio e Mundo Muçulmano (GTOMMM) da Universidade de São Paulo Cila Lima explica melhor como é o feminismo das mulheres muçulmanas.  

JC – Como a senhora começou suas pesquisas na área do Islã? Chegou a estudar feminismo fora dessa área? E como relacionou os dois?

Cima Lima – Eu já estudava gênero, e, quando fazia Relações Internacionais, comecei a estudar o Iraque e a mulher muçulmana lá. Comecei a sondar essa questão e desenvolvi um projeto pro mestrado, fiz um trabalho sobre as mulheres islamistas, ou, como eu gosto de chamar, sobre o ativismo fundamentalista de mulheres muçulmanas no Egito e na Turquia.

Sua tese diferencia o ‘feminismo islâmico’ de outros tipos de feminismos ligados ao Islã. Como e quando eles se diferenciaram?

Eu descobri que há três movimentos sociais de mulheres muçulmanas principais: são eles o “ativismo islamista de mulheres”, ou seja, “ativismo fundamentalista de mulheres muçulmanas”, que não é propriamente feminista, é fundamentalista, rejeita o feminismo internacional, é uma reivindicação de emancipação totalmente diferente. O “feminismo secular”, que começou no Egito em 1923, tem um histórico muito longo de luta não só lá, mas em muitos paiśes muçulmanos. Ele se preocupa com a estrutura social e política de cada país, inserção local e regional, leva em conta os problemas internos, adaptando o feminismo ao país e suas leis específica. Nos anos 80 surge o “feminismo religioso/teológico” que se autointitula “feminismo islâmico”. É igual em todos os países, transnacional e desterritorializado. Nasceu em vários países ao mesmo tempo, e possui um discurso único, de reinterpretação das fontes religiosas.

Esse três movimentos são bem distintos, como cada um deles enxergam a indumentária muçulmana para as mulheres?

O “ativismo islamista de mulheres” e o “feminismo islâmico” se diferenciam na indumentária da seguinte maneira: pras islamistas é obrigatório o uso de toda a vestimenta islâmica, isso significa uma piedade religiosa. Se você é religiosa, muçulmana, temente a Deus, é obrigada a usar essa vestimenta. Quanto mais radical, escura a cor, sem transparência, corpo inteiro, com luva, tampando os pés, mais piedosa você é. Já pro feminismo islâmico não, a roupa islâmica pode ser apenas uma marca de identidade, uma marca cultural, uma forma de externalizar sua religião. Pra elas, não existe obrigatoriedade dentro do Islã pro uso da vestimenta. Agora, o “feminismo secular” rejeita completamente a vestimenta islâmica, diz que é pura e simplesmente um instrumento de confinamento, reclusão e exclusão da mulher. Já dá para perceber que são três projetos de emancipação bem diferentes. Outro exemplo muito marcante é com relação a complementaridade de gênero. As feministas seculares falam em igualdade de gênero. As islamitas e as feministas islâmicas falam em complementaridade de gênero. Só que com uma diferença definitiva, de acordo com um conceito de “vertical” e “horizontal” que eu adotei: as islamitas aceitam a complementaridade de gênero “vertical”, ou seja, uma hierarquia de gênero, que tem como poder o masculino. Na concepção delas, Deus e a religião deixam como legado essa hierarquia. As feministas islâmicas não, elas consideram a complementaridade de gênero “horizontal”, ou seja, querem literalmente a “complementaridade” de gênero, mas a narrativa delas é de ajuda, parceria, conjunção de organização da vida, tanto da privada quanto da pública, e até de igualdade, elas também utilizam esse termo.

Há reivindicações específicas do ‘feminismo islâmico’? No Ocidente, as mulheres querem mais espaço e oportunidade, as feministas islâmicas visam mudanças em leis opressoras, por exemplo?

A todo momento elas buscam mudanças nessas leis. As fundamentalistas não querem, pelo contrário, elas desejam que a hierarquia de gênero seja mantida. ONGs como Karamah, Sister In Islam, Musawah, que são feministas islâmicas, falam em igualdade de gênero o tempo todo, em mudança de leis, busca de oportunidades, inserção das mulheres no mercado de trabalho, na educação, igualdade na família, no poder dentro das casas. As bandeiras são muito semelhantes, por isso eu coloco que elas não são isoladas, o movimento feminista islâmico não está isolado do feminismo internacional, porque a agenda de lutas é muito próxima, a diferença é que elas especificam, relacionam com as fontes religiosas.

Como é a atuação do feminismo islâmico? Como elas expandem essas ideias para outras mulheres muçulmanas?

As ONGs dão cursos de educação islâmica, e a intenção desses cursos é desmontar toda uma narrativa que os ortodoxos religiosos, os fundamentalistas fazem sobre a mulher muçulmana. Elas fazem uma desconstrução de que o Islã não dá às mulheres o direito de modernidade, cidadania, pluralidade, e a atuação delas segue nessa linha. Uma crítica que eu faço, e coloquei até na minha tese, é que elas se dedicam muito a educação islâmica ao invés de se dedicarem também a formação de mulheres muçulmanas que se insiram nos parlamentos, que podem suceder também no judiciário, para realmente mudar a lei. Elas ficam muito nessa questão da educação islâmica, e assim corre-se alguns riscos. Por exemplo, a ONG Karamah está com um discurso cada vez mais próximo ao discurso das ativistas islamista, eu acompanho-as desde 2009 e tenho percebido que elas estão, aos poucos, se afastando um pouco dos discursos feministas. Na minha concepção, só a educação islâmica pode aprofundar uma religiosidade muito radical. Muitas vezes o feminismo islâmico permeia em dois discursos, por isso uso o conceito de continuidade: ele se aproxima às vezes do discurso islamista, e se aproxima no outro extremo do discurso de feminista secular, fica entre essas duas barreiras, mas nunca ultrapassa, não ultrapassa a fronteira do islamismo, não é fundamentalista, continua sendo feminista, mas não ultrapassa também a fronteira do feminismo secular, continua sendo religioso. A atuação delas é com reinterpretação das fontes religiosas, então toda a narrativa é com esse discurso da reinterpretação sob o viés da mulher, sobre o viés feminista.

E como essa reinterpretação enxerga a shariah (código de leis do Islã)?

Elas desconstroem totalmente o discurso masculinista que faz uma interpretação das fontes religiosas colocando as mulheres sempre num papel de submissão. Antes de me especificar na shariah, vou citar um exemplo que a socióloga feminista Fátima Mernissi, escritora do livro que é um marco do nascimento do feminismo islâmico, reinterpretando alguns hadith [dizeres do profeta Maomé]: ela começa analisando o que os tradicionalistas falam sobre as mulheres dos profetas. Uma das ideias que esses ortodoxos colocam é que as mulheres dos profetas eram todas submissas e reclusas, e ela vai desconstruir totalmente isso, começando com a primeira mulher de Maomé, Khadija, que tinha 40 anos, dois casamentos anteriores, resultando em dois filhos, era “empresária”, e casou com o profeta quando ele tinha 25 anos. Ou seja, a primeira mulher de Maomé já estava completamente dentro do espaço público e social, e a socióloga continua analisando todas as mulheres até chegar na última, Aisha, que foi importante na construção e destruição de quatro califados, participando através da luta armada. Ela era chamada para lutar na linha de frente dos conflitos, cadê a reclusão?
Sobre a shariah, as feministas islâmicas possuem uma interpretação diferente. Para elas, a shariah é a revelação de Deus, são os conceitos, premissas, guia moral para os muçulmanos. Já  o fiqh é a jurisprudência islâmica, algo que os homens que fizeram, uma interpretação deles do escritos sagrados. Por isso que ela coloca as mulheres em segunda classe. Uma prova de que é algo feito pelo homem é que existem quatro escolas reconhecidas para ditar essas leis: Hanifi, Maliki, Shafi’i e Hanbali. Cada país tem leis diferentes, ou seja, elas não foram ditadas pelo profeta, e sim pelos homens. As ativistas islamistas não consideram isso, acham que a shariah é uma só, que não precisa de mudança nenhuma, que toda a jurisprudência utilizada é a própria revelação. Por tudo isso que a iraniana feminista islâmica Ziba Mir-Hosseini disse “feminismo islâmico é a criança não querida dos movimentos islamistas”.