O que guarda o bom-dia de Antônia do 8012?

Cobradora do circular 1 vai além do ambiente de trabalho e compartilha a sua história

(Por: Liz Dórea)

Por Laila Mouallem

“Bom dia”. Três e oitenta, passa a catraca. “Bom dia, filho”. Passe livre, gira a catraca. “Bom dia, menina. Vai descer na Educação? Avise o motorista que vai descer pela frente, por favor”. Bilhete único aprovado, catraca gira novamente. Entre o som misto do automatismo da aprovação da passagem e da mecânica da catraca, o caloroso “bom dia” da cobradora Terezinha Antônia de Jesus dos Santos. E é de “bom dia” em “bom dia” que o carro 336, da linha 8012, enche antes mesmo das sete horas da manhã.

Terezinha para amigos e familiares e Antônia no trabalho, é uma das cobradoras que funcionários, docentes e estudantes da USP podem encontrar no Circular 1 logo cedo. Sua figura é marcante em todo o trajeto: desde o cumprimento caloroso até a preocupação com o ponto de cada um, faz questão de esperar que todos desçam onde planejaram. Aposentada desde 2009, tem uma vida estável – trabalha mesmo porque gosta do que faz. “Eu não gosto de isolamento. Eu gosto de viver. Eu gosto da vida. Eu gosto de ver gente, e me faz bem fazer o que faço: informar.”

Raízes

Nascida em Porteirinha, cidade do interior de Minas Gerais, morou em Janaúba por anos – cidade que gostaria que estivesse na mídia por outros motivos que não o ocorrido na creche Gente Inocente.“Eu não conheço as pessoas, tem 40 anos que saí de lá. Eu gostaria que Janaúba fosse vista, estivesse na mídia por um motivo bacana. Está crescendo, está bem… Não com uma tragédia horrível dessas.” Não mora lá há 40 anos; veio para São Paulo em 1977. Em Minas, seu pai era mascate – espécie de vendedor ambulante – e sua mãe, pensionista. Na busca por melhores condições de vida para os quatro filhos, sendo Antônia a mais velha, o casal resolveu mudar de estado. “Chegando aqui, meti a cara no trabalho”, recorda. Seu primeiro emprego foi em uma fábrica de suspiros, onde precisava ultrapassar a meta de mil pacotes diários para receber comissão. Vivia fazendo hora extra aos fins de semana e só poderia ser registrada após três meses de experiência. Mas, por ser fundamental na renda familiar – “arrimo de família”, já que sua mãe ganhava pouco como empregada doméstica –, saiu de lá assim que conseguiu um trabalho que a garantisse mais estabilidade.

Em 1982, com o falecimento da mãe, precisou procurar por ainda mais segurança com um emprego perto de casa. O pai estava sempre entre Minas e São Paulo, vendendo e comprando produtos dos dois estados, e Antônia ficou responsável por seus três irmãos, todos menores de idade. Na época, tinha 22 anos, enquanto eles tinham 13, 14 e 16. “Minha mãe e eu nos juntávamos para fazer as coisas – pagar o aluguel, a comida, dar um caderno e uma roupa aos meus irmãos que eram menores. E depois essa responsabilidade ficou só para mim. Eu era irmã e mãe ao mesmo tempo.”

Trabalhou durante anos no Banco Itaú e assim foi estruturando o que hoje tem como base, como a construção de sua casa própria – que define como tendo sido seu maior prazer. Ficou no banco até que foi contratada pela Viação Gato Preto, empresa em que está há 21 anos. Logo que entrou, conheceu o também recém chegado Gildécio, com quem se casou e divide a vida. Ele a chama de Antônia, contribuindo para a incorporação do nome, que fora da avó. “Os dois nomes me deram sorte, gosto dos dois.”

Cotidiano

O dia de Antônia começa às quatro da manhã. Ela mora no Jardim Cidade Pirituba e acorda ainda à noite para pegar o ônibus na garagem exatamente às seis e onze, já que o horário é todo tabelado. Em casa, serve café para o marido e pega a marmita pronta desde a noite anterior. Às cinco da manhã, já está a caminho, na estrada. Para almoçar, tem meia hora. “É corrido, mas dá. Há 21 anos que estou fazendo, a gente faz de um jeitinho que dá”, conta.

O fim do seu expediente é às 15h29 e, na maioria das vezes, volta direto para casa. “Sou profissional aqui. Na minha vida de casa, sou dona de casa. Faço janta, lavo, passo, cozinho, arrumo. Eu adoro ser dona de casa.” Ao mesmo tempo, Antônia reconhece as dificuldades enfrentadas por ser mulher. Ela fala sobre ouvir questionamentos por ter se casado com quase 40 anos e por não ter tido filhos, por exemplo, mesmo não tendo problemas com isso.

Para além da questão de gênero, ela fala sobre a discriminação racial a que também está submetida, além da proveniente do recorte de classe, ainda que se considere de classe média baixa. “Para mim, todos aqui somos iguais. E eu sei que existe também a discriminação com homossexuais. Às vezes, você vê as pessoas olhando de cara torta para uma menina que está com a sua namorada ou um menino que está com seu namorado. A gente tem que respeitar. Cada um é cada um.”

8012

Apesar de já ter trabalhado em outras linhas, Antônia gosta muito dessa pela dinâmica dos usuários com os assentos preferenciais. Ela repara que dar o lugar a uma mulher grávida, a um idoso ou a um deficiente é um movimento mais orgânico na 8012, o que a faz ter um apreço especial pela linha.

Antônia transparece conforto em sua posição e estabelece uma natural relação de troca com os passageiros. Durante a entrevista que deu ao JC, em uma situação cotidiana, não hesitou em pedir que os usuários trocassem notas por moedas para possibilitar o troco das passagens. Fones de ouvido e livros não a afastam e nem os afastam de seu carisma. Em meio a passageiros que se dispunham, ao menos, a procurar em suas carteiras, surge uma garota com 20 reais em moedas empilhados, provenientes da venda de brigadeiros. O entusiasmo de Antônia e de quem estava ao redor foi instantâneo, como um grupo torcendo por um mesmo fim.

Para ela, a chefia da empresa é acessível. “É claro que cada um no seu quadrado, mas não é uma pessoa que você tem aquela distância, como funcionário e empresário”, conta. “Não é aquela pessoa que passa por você e não dá bom dia. Nosso patrão é educado, sensato. Ele sabe quem é quem, conhece todos os funcionários dele.” Mas, segundo a cobradora, há sempre a possibilidade de pessoas não simpatizarem umas com as outras e terem a intenção de prejudicar. “A verdade sempre aparece. Eu não me preocupo com o que dizem de mim, o importante é que posso provar o que sou.”

Perspectiva

Hoje, com incertezas quanto ao futuro da profissão, Antônia pensa em outras formas de complementar a renda. “Desde que eu entrei aqui, sempre falam que vão acabar com o nosso trabalho. Um dia pode acontecer, porque está tudo informatizado.” A figura do cobrador, para ela, é necessária principalmente por ser uma ajuda ao motorista, que está constantemente ocupado com a direção do veículo. “A catraca não levanta daqui para ajudar o motorista com um deficiente. A catraca não olha a porta. Como é que o motorista pode trabalhar sozinho em um carro que às vezes tem cento e poucas pessoas? O nosso trabalho é necessário.”

No dia 9 de outubro, Antônia fez 60 anos. Fã de MPB, gosta de ir em shows, ainda que não vá em muitos pelo alto valor dos ingressos. Vaidosa, mostra constante autocuidado, apesar de adversidades que esteja vivendo. Óculos de sol, lenço no pescoço e sorriso no rosto, ainda que eventuais lágrimas nos olhos quanto toca em certos assuntos. “A gente tem que separar as coisas. Vesti minha roupa, passei meu batom e estou aqui dando informação.” Para ela, a gentileza faz parte da vida, e faz bem para quem a distribui por onde vai. “Às vezes, eu dou aqui mil “bom dia”. Bom dia, bom dia, bom dia. Eu gosto, porque você dá o que você tem. E todo mundo quer ter um bom dia. Eu dou, porque eu faço ele ficar bom. Mesmo que as coisas estejam ruins, eu faço mudar a minha vida.”