Resistência e artes afro-brasileiras

Celebração do aniversário de dez anos do núcleo promove vivência cultural na Universidade

A mestra sambadeira e tocadora de prato Zélia Maria Paiva Souza, vinda do Recôncavo Baiano. Foto: Gustavo Drullis

Por Gustavo Drullis

Para comemorar  seus dez anos de existência, o Núcleo de Artes Afro-Brasileiras promoveu, entre os dias 17 e 19 de outubro,  o III Encontro de Artes Afro-Brasileiras, com o tema “Educação e Saberes Tradicionais”. O evento contou com a presença de convidados do Recôncavo Baiano, mestres e mestras sambadeiras de diferentes grupos, que participaram de rodas de conversa, vivências de samba chula e capoeira e exibição de documentário, além do lançamento d’A Cartilha do Samba Chula.

Nos dois primeiros dias do evento, em que os mestres, mestras e convidas foram recebidos com refeições, o foco foi o samba chula, tradicional manifestação de samba do Recôncavo Baiano, que remonta os tempos da escravidão. A cartilha lançada na ocasião consiste em um livro interativo com ensinamentos e registros do samba chula, resultado de um processo de ensino-aprendizagem em cursos, oficinas e vivências. Os documentários exibidos – A Cartilha do Samba Chula e Os Mestres Violeiros do Samba Chula – faziam parte desse material.

Viola machete, prato, faca, percussão e voz no samba chula foram os temas de uma série de vivências nesses dois dias, assim como a culinária e a indumentária típicas dessa manifestação. Para as festividades de encerramento do evento, o Núcleo preparou vivências envolvendo o som do abaçá e do berimbau, instrumentos que logo teriam, na prática, seus sons emitidos, em um roda de samba que fechou a noite do dia 19.

A baiana Zélia Maria Paiva Souza veio direto da Vila de São Braz, quilombo na cidade de Santo Amaro da Purificação, ao encontro de conterrâneos na USP. Ela conta que foi somente quando completou meio século de vida que passou a dedicar sua vida ao samba chula, manifestação que remonta à época da escravidão. “Hoje, eu me sinto uma mulher realizada. Eu tinha problema de depressão e quem me curou foi o samba”, diz a mestra sambadeira e tocadeira de prato Zélia Maria. “O samba é um recife que a gente faz na cabeça”, completa.

Durante o dia, Zélia, que faz parte do Samba Chula de São Braz, conduziu uma oficina de como tocar prato, que no samba são aqueles mesmos em que se come. “As alunas tocaram tudo direitinho”, revela. A sambadeira participou, também, de uma roda de conversa à tarde, e logo se arrumou, para sambar e tocar seu prato com maestria na roda de samba chula promovida à noite. Essa manifestação carrega uma série de códigos específicos, sobres as quais Zélia fala facilmente.

“Eles falaram muito de oralidade, outras formas de aprender e ensinar. Trazer essas pessoas, mestres e mestras, que vivem e estão mantendo vivas essas manifestações é o que falta na universidade também. O que eles mesmos têm a dizer sobre a vida, trajetória e cultura deles? A forma de ensino e aprendizado deles, que vem dessa tradição oral afro-ameríndia, não só enriquece, como também é base”, afirma Eliany Funari, uma das organizadoras da celebração, no Núcleo desde 2001.

Na sede do Núcleo ocorrem encontros semanais de capoeira Angola, maculelê, dança afro e percussão, além de serem promovidas aula de aperfeiçoamento em dança e criação de espetáculos. “O trabalho do Núcleo é muito sério, nesse sentido. Ele consegue dar o recado intelectual, filosófico e histórico dessa cultura e dialogar.  É um trabalho que acabou se tornando uma fonte de referência”, diz Thiago Mendes, no grupo desde sua fundação, quando estudava Ciências Sociais.

O encontro marcou também 20 anos de atuação do Grupo de Capoeira Angola Guerreiros de Senzala. Foi como tudo começou, em 1997, em um espaço do Centro Acadêmico da Química. Após uma negociação conturbada com a USP para negociação de um espaço e ocupação dos barracões que estão até hoje, os Guerreiros de Senzala foram institucionalmente reconhecidos, com a criação do Núcleo de Cultura e Extensão em Artes Afro-Brasileiras, em 2007.

“A nossa relação com a USP sempre foi meio conturbada, no sentido de que eles nunca reconheceram nosso trabalho e exigiam sempre o espaço que a gente ocupava”, avalia Thiago Mendes, no grupo desde sua fundação, quando estudava Ciências Sociais. Chegar à terceira edição do Encontro de Artes-Afrobrasileiras, então, representa uma resistência. Funary concorda, “esse evento está sendo feito na garra, da forma como acontecem os mutirões coletivos. É assim que resistimos, porque queremos fazer acontecer.”

Eventos debatem a cultura africana

Por Luís Henrique Franco

O Centro de Estudos Africanos (CEA) realizou, entre os dias 16 e 19 de outubro, eventos com o tema literatura e cinema africanos. O objetivo da entidade é promover um maior debate e conhecimento sobre as sociedades e culturas da África e realizar uma aproximação entre esse mundo e os brasileiros.

O Centro, fundado em 1969, busca promover a pesquisa sobre a África e difundir a realidade africana no Brasil através de relações de intercâmbio intelectual e cultural entre essas sociedades. Na época de sua criação, os países africanos tornavam-se independentes, e a USP viu neles a possibilidade de estabelecer relações de cooperação e solidariedade, criando contatos com as universidades africanas para realizar estudos e trazer parte dessa realidade para o Brasil, abordando temas relacionados a questões de comportamento, História da África, línguas, literaturas e cultura do continente.

Para a professora Rita Chaves, que estuda a literatura africana desde 1978, o estudo da África no Brasil é fundamental para entendermos nossas próprias origens. “A África, em termos históricos e culturais, é fundamental para a formação do Brasil. Ela está presente no nosso cotidiano, no nosso patrimônio cultural”, afirma, dizendo ainda que o estudo é peça chave para combater o preconceito da sociedade para com o negro que, segundo ela, origina-se também de um preconceito contra o trabalho braçal. Contudo, apesar de defender essa aproximação entre os mundos brasileiro e africano, Rita fala que primeiro deve haver um “acúmulo de conhecimento sobre o assunto, para colocar em xeque informações estereotipadas e promover uma reflexão que irá fortalecer uma aproximação.”

Interessado na divulgação da pesquisa sobre a África e sua sociedade, o CEA promove eventos para tratar de questões relativas a esse continente. Na semana do dia 16 de outubro, o foco foi dado a questões de produção cultural, com enfoque na África de Língua Portuguesa. O primeiro evento tratou-se de um colóquio promovido pela Professora Rita, onde foram debatidas a literatura e as narrativas do continente. Também foi realizado, entre os dias 17 e 19, um minicurso sobre o cinema produzido nos países africanos de língua portuguesa e como a produção de filmes ajudou a construir a identidade nacional. “Nossa cultura é extremamente audiovisual”, comentou a professora Carolin Overhoff Ferreira, da UNIFESP, que ministrou uma aula do curso. “Eu nunca estive em Moçambique nem em Angola, e o meu imaginário desses lugares vem da literatura e dos filmes. A arte não retrata mundo, ela cria mundos, mas são pelas construções que a gente tem acesso a essas culturas”.

Para os interessados, o CEA promove eventos desse tipo ao longo de todo o ano. A programação pode ser encontrada no site da instituição ou na página Eventos USP. “São eventos extremamente importantes. O Brasil deveria respirar África, o Brasil é africano”, defende Carolin, afirmando a importância de se conhecer essa história principalmente para reafirmar a identidade do movimento negro. O mesmo defende Rita, ao afirmar que “estudar as culturas e as literaturas africanas é uma são formas de resgatar uma dívida que nós acumulamos com o passar dos séculos, e também um modo de conhecer melhor o Brasil”.