Surrealismo: importante passo na valorização das artistas

Aniversário da 1º exposição do grupo revive discussões do papel da mulher na arte

Por Claire Castelano

Era Paris depois da Primeira Guerra Mundial, 14 de novembro de 1925, quando estreou nos salões da Galerie Pierre a primeira exposição dos surrealistas. Tal movimento definido por Norma Telles, historiadora e professora da PUC-SP, como “uma corrente radical de pensamento e arte” acreditava na fruição da liberdade e rejeitava a chamada ditadura da razão e dos valores burgueses.

Não se tem notícia de um movimento artístico anterior ao Surrealismo que tenha aberto um espaço tão significativo para a participação de mulheres. No entanto, quando se pensa em Surrealismo, os nomes que automaticamente nos surgem à mente são majoritariamente masculinos. Assim como em vários outros grupos em que as mulheres tiveram alguma presença, a história as apagou ou as deu um papel secundário. É nesse aspecto que uma vertente de estudos de história da arte que investiga a presença das artistas nesses movimentos vem crescendo.

Insomnio I, 1947, por Remedios Varo

A Universidade de São Paulo participa dessa recente linha de estudos. Há pesquisadoras como Ana Paula Simioni, professora da USP que ministra uma disciplina optativa chamada Arte, Gênero e Sociedade, que desenvolvem trabalhos importantes nessa releitura que resgata o papel das mulheres na arte. Além disso, Rosana Paulino, artista formada pela ECA, constrói trabalhos que revalorizam a história da mulher negra brasileira. Neste ano, também foi defendida a tese de Stela Regina Fischer da ECA que estuda ações performáticas de mulheres artistas latino-americanas.

Relação ambígua

Por serem contra os ideais moralistas da época, os surrealistas também atacavam o patriarcado e suas imposições de comportamento e domesticidade. É nesse contexto que as artistas desse período acharam espaço para participar ativamente do grupo, questionando, assim, certas estruturas do papel da mulher nos movimentos artísticos modernos que, em geral, não as incluíam em suas exposições. “Ao se mostrarem ativas, criativas e presentes elas acabam tornando mais contundente a presença de mulheres como agentes no cenário das artes”. como explica Norma.

Além disso, é possível dizer que o  questionamento à cultura europeia que levara à Guerra, a crítica ao racismo, ao imperialismo e ao mito do progresso assim como propostas de esquadrinhar o inconsciente, amar a natureza selvagem e simpatizar com outras culturas, “tornava o movimento atraente para as mulheres”, como afirma Norma. A história dessa associação entre as mulheres e o surrealismo, porém, é complexa e contraditória desde o início. Os surrealistas, por coerência teórica, preconizavam liberdade tanto para as mulheres quanto para os homens, entretanto, como levanta a professora, “entre o que [André] Breton definiu como “problema da mulher” no segundo Manifesto [surrealista] e a realidade da vida cotidiana delas há um abismo com demandas incompatíveis”, ou seja, ainda que o movimento criasse um embate com certos valores do patriarcado, faltava indagar que papel, além de musas inspiradoras, as mulheres gostariam de viver, como criticou Simone de Beauvoir no Segundo Sexo.

Não por acaso, a emergência dos trabalhos de Freud e o nascimento da  psicanálise foram contemporâneos ao Surrealismo que  acreditava no papel do inconsciente na construção de uma arte criativa. Este aspecto levanta inquietações sobre a presença feminina ter sido significativa nesse movimento em específico. Norma pontua que “a pecha de irracional acompanha as mulheres desde o início da Modernidade. O termo pesa em sua domesticação e adaptação a padrões”. É importante ressaltar, porém, que o ideal de mulher para os surrealistas é a femme enfant – a mulher criança – e, como explica a professora, “talvez uma associação enganosa entre os termos criança e irracional tenha conduzido a ideia delas terem acesso mais fácil ao inconsciente”. Outro ponto a ser colocado é que, nessa proposta de se desvincular da racionalidade, os surrealistas também desafiavam o paradigma de gênero. “O incentivo para homens e mulheres era para que desafiassem as noções de gênero com o objetivo, escreve Breton no segundo Manifesto, de determinar “um ponto na mente” onde os contrários, as oposições binárias se desfizessem”, conta Norma.