Marilena Chauí e sua defesa da universidade que nos ensine a lutar e vencer

(Foto: Daniel Miyazato)

Crítica a um modelo operacional de ensino, a nova Professora Emérita da FFLCH fala sobre sua carreira, seus anos de USP e o papel do intelectual na discussão de perspectivas futuras para o Brasil

Por Daniel Miyazato

No dia 13 de dezembro ocorre a cerimônia de outorga do título de Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) a Marilena de Souza Chauí. A maior especialista do Brasil quando se fala de Espinosa, aquela cujos livros didáticos de filosofia introduziram incontáveis jovens neste campo mais desconcertante do saber.

O JC teve a oportunidade de entrevistar Marilena no Departamento onde ela construiu sua carreira e se tornou umas das mais importantes intelectuais do país. Com sua fala sóbria, de empostação admirável, a filósofa inspira o silêncio de quem a escuta. As palavras não são desperdiçadas pela professora, todas soam com propósito.

Defensora da postura participativa do intelectual, Marilena se fez presente em movimentos sociais histórico, como as manifestações de maio de 1968, na França, onde fez seu doutorado, assistindo a cursos de intelectuais como Foucalt, Marcuse e Deleuze. IDe volta ao Brasil, lutou para manter o Departamento de Filosofia de pé frente a dura repressão do regime militar.

Marilena é grande crítica das reformas pelas quais a Universidade passou principalmente durante a década de 1970, empreendidas pela ditadura. Para a estudiosa, a unificação do vestibular, junto a inadmissão de vagas ociosas, levou a massificação do ensino.

Somado a este processo, o aumento do número de disciplinas e a transformação dos cursos de anuais para semestrais teria prejudicado o aprendizado e a reflexão aprofundada, no que a professora chama de escolarização da universidade.

Sempre atenta às questões sociais e políticas de seu tempo, a Professora Emérita desenvolveu um estilo de reflexão que parte dos acontecimentos do dia-a-dia, diferente de muitos de seus colegas que se debruçam apenas sobre os textos clássicos.

De suas produções, destaca-se Convite à Filosofia, livro voltado para o ensino médio e A Nervura do Real, sua grande obra sobre o pensador holandês Baruch Espinosa, ambos receberam o Prêmio Jabuti, o primeiro em 1995, na categoria Didáticos e o segundo em 2000, na categoria Ciências Humanas.

JC – Foi uma surpresa receber o título de professora emérita?

Marilena – Minha surpresa foi há três anos, quando meu nome passou pelo colegiado do Departamento e foi para a Direção. No entanto, durante os anos seguintes, não foi possível reunir uma congregação que tivesse o quórum de dois terços.

Mesmo com os professores falando que poderiam votar por e-mail, o diretor Sérgio Adorno não quis que fosse dessa forma. Então quando a professora Maria Arminda tomou posse, a primeira providência dela foi submeter os vários pedidos de professores eméritos a votação. Eles foram aprovados e a cerimônia foi proposta.

O que a senhora mais admira e menos admira na USP?

O que mais admiro na instituição é o fato de, pela docência e pelas pesquisas realizadas, ela ter se tornado a universidade mais importante da América Latina, em todos os campos do conhecimento. A minha admiração vem do trabalho que nós fizemos durante todos esses anos para garantir a qualidade da instituição.

O que eu mais critico é a excessiva centralização, burocratização e a implantação do que chamo universidade operacional, que é a universidade produtivista, que pensa o ensino como uma correia de transmissão de saberes e aborda a pesquisa como um censo de problemas a serem resolvidos imediatamente. O que mais me incomoda é que essa perspectiva é aquela que pode destruir a USP.

A senhora sempre quis explorar o campo da filosofia?

Sempre! Desde de adolescente. Fiquei fascinada quando, aos 16 anos, tive minha primeira aula de filosofia com o professor João Villa Lobos, no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, na rua São Joaquim.

Ele explicou, sem nenhum aviso prévio, para adolescentes de 16 anos, o conflito entre  as filosofias de Heráclito e Parmênides e a argumentação de Górgias e Zenão de Eleia. E eu descobri essa coisa extraordinária de que o pensamento pode pensar sobre si próprio e de que a linguagem pode pensar sobre si própria; e de que a pergunta pela racionalidade do seres humanos e do mundo é uma pergunta infinita no espaço e no tempo.

Isso me levou para a filosofia definitivamente!

(Foto: Daniel Miyazato)

Qual sua memória ou as memórias mais queridas do início da carreira acadêmica?

Bom, primeiro fui professora do ensino médio, no Colégio Estadual Alberto Levy, entre 1965 e 1966. Ingressei na faculdade em 1967.

A lembrança que eu tenho não foi logo da entrada, porque ingressei, dei aula por um ano e, seguindo com a tradição do Departamento, fui enviada para França para fazer meu doutorado. Voltei em meados de 1969, depois do Ato Institucional Nº5, quando nossos professores haviam sido cassados ou exilados e havia o risco do Departamento desaparecer. Eu vim para lutar pela autonomia e manutenção do Departamento de Filosofia.

Em função dessa minha luta contra o autoritarismo, realizei mudanças no estilo pedagógico, introduzindo trabalhos sem nota, relatórios dos alunos sobre seus interesses, problemas e dificuldades. Ou seja, havia uma relação de muita proximidade. E a lembrança mais bonita que tenho, foi durante estes anos de terror de Estado, de medo, de censura. Uma classe do primeiro ano de filosofia, ao término do curso, me entregou uma estatueta de Dom Quixote, dizendo que comigo, eles tinham aprendido que era possível lutar e vencer.

Desde que a senhora ingressou na Universidade, na década de 1960, a USP mudou muito, principalmente durante a década de 1970, sob o regime militar. A professora destacaria algum momento da trajetória da instituição?

A mudança que ocorreu aqui foi chamada de reforma MEC-USAID, que substituiu os cursos anuais por semestrais, criou a divisão entre disciplinas optativas e obrigatórias, os créditos, os prazos absurdos para mestrado e doutorado e a centralização burocrática. Portanto, a universidade na qual me formei e a universidade na qual me tornei professora foram estruturalmente muito diferentes.

Mas eu penso que em certas áreas, e o caso da filosofia foi um desses, nós conseguimos contornar a reforma. Criamos disciplinas obrigatórias I, II, III e a optativa IV, o que na prática significa que os cursos permaneceram anuais e mantivemos os seminários, as dissertações, as formas de avaliação e as exigências do ponto de vista da formação.

Agora, eu diria que o impacto maior para mim foi quando os estudantes do segundo grau, produzidos pela reforma feita pela ditadura, chegaram na Universidade. Eles haviam sido despossuídos das formas de expressão do pensamento e da linguagem. Como sempre quis dar aula para o primeiro ano, eu chegava na sala e dizia: ‘os meio de comunicação e o ensino médio da reforma fizeram com que vocês perdessem o direito a expressão. A minha função aqui é ensinar vocês a falar, ouvir, ler e escrever. Recuperar o direito a expressão.’

Cada um dos professores encontrou seus caminhos para manter a nossa qualidade, nossa tradição, nosso envolvimento com o mundo cultural brasileiro e internacional e a nossa convicção de que, não importam as circunstâncias, se você foi bem formado, você transmite isso. Penso que a ênfase deste Departamento recai sobre a formação, por isso a docência é muito importante.

Diria que embora a universidade na qual eu entrei e a universidade na qual eu leciono sejam duas universidades, o ponto comum entre as duas é a ideia da formação.

O que a Universidade poderia fazer para ser mais acessível?

Luto pela universidade pública, laica, republicana, democrática, que considera o ensino superior um direito do cidadão e tem as suas portas abertas para toda a cidadania, portanto aquilo que a USP pode fazer não é nem a privatização, que está em curso, nem a massificação, mas sim a democratização. Operar para a garantia do ensino médio, receber os estudantes para uma formação e uma garantia de que eles serão capazes de servir ao país das mais diferentes maneiras possíveis. É um direito que se tem, e se transmite aos outros. É por essa universidade que eu luto.

As esquerdas, de todo o mundo, passam por um momento de recuo diante da ascensão de movimentos de direita? Seria agora um momento de refletir sobre o que foi feito e pensar novas estratégias ao invés de agir?

É o momento de agir. Uma esquerda verdadeira é aquela cuja ação é uma ação feita com pensamento. Não se para pensar, o pensamento já tem que ser uma forma de ação. E quando digo esquerdas me refiro não apenas aos partidos políticos, mas também aos movimentos sociais e às instituições públicas.

Estamos atravessando um momento de desinstitucionalização da república brasileira, que aparece no fato de que os três poderes perderam seus papéis próprios, interferem uns nos outros e eles mesmos não sabem qual é o seu propósito. Este processo é gravíssimo. Ao mesmo tempo, tem-se, a uma velocidade maior do que se poderia imaginar, subindo àa superfície da sociedade, aquilo que é seu fundo permanente desde a época colonial: uma sociedade autoritária, conservadora, reacionária, excludente, racista, com preconceitos de religião, sexo e classe. É neste fundo que se frutifica a direita e a extrema direita. É isso que vem àa tona agora com este processo de quebra dos padrões da vida republicana e com a inércia da esquerda.

A esquerda precisa agir, os movimentos precisam recuperar seus espaços e seu discurso e temos que reinstitucionalizar a República e redemocratizar o país. Pois isso pode nos levar não a apenas a uma ditadura disfarçada, mas a um fascismo puro e simples.

Nos últimos anos, despontaram na mídia do Brasil alguns intelectuais “popstars”, como Karnal e Pondé. A senhora avalia que a ascensão deles está relacionada com a atual situação do debate político do país?

Para ser sincera, não os conheço, nunca os li e nunca os ouvi.

Desde de 2001, não frequento a grande mídia. Não leio os jornais, as revistas, não ouço rádio e não vejo televisão, que é onde estes intelectuais atuam.

A sociedade brasileira passou a sustentar uma intensa polarização política desde as manifestações em meados de 2013. Qual o papel do intelectual nesse cenário?

Uma coisa que o intelectual não pode fazer, e que é uma tradição ibérica que herdamos, é a ideia de que ele é o detentor do saber e do pensamento e de que vai conduzir os outros mortais.

O papel dos intelectuais é compreender o momento que estamos vivendo, compartilhar com outras instâncias da vida cultural e da vida social as discussões, os debates e a busca de caminhos.

Penso que cabe ao intelectual ser engajado. Então ele não é um mestre, nem um tutor, ele é aquele que se engaja em movimentos culturais, sociais e políticos pela defesa dos direitos e da democracia.