“Essa intervenção militar é um golpinho publicitário”

Para o escritor Milton Hatoum, que conclui trilogia ambientada na Ditadura, a situação do país continua “degradante”

Foto: Rodrigo Brucoli

Por Rodrigo Brucoli

Após poucos meses de lançamento de “A noite da espera”, primeiro volume da trilogia “O lugar mais sombrio”, Milton Hatoum, reflete sobre as relações entre o seu romance e o atual quadro político brasileiro.

Martim, narrador e protagonista, é um jovem marcado por diversas fraturas: a ruptura com a mãe, que ficou em São Paulo, o relacionamento tenso com o pai, com quem se muda para Brasília, o contexto de incerteza do período de chumbo da Ditadura civil militar.

Em entrevista ao JC, Hatoum reflete sobre o pouco que o Estado brasileiro mudou. Desigualdade, violência, degradação urbana e repressão continuam sendo suas marcas fundamentais.

Embora os leitores encontrem muitas correspondências entre o livro e o atual contexto do Brasil, a trilogia começou a ser escrita há dez anos, quando o quadro político era bastante diferente. Segundo Hatoum, “os livros traem os autores e ecoam no presente”. No caso, essa traição demonstra o quanto o Estado ainda age com o autorismo e a violência do período ditatorial.

Você poderia nos contar como foram os seus anos de graduação na USP?

Eu estudei arquitetura nos anos 70 na FAU-USP, e, sem dúvida, tive ótimos professores. Poderia enumerar vários, como o Julio Katinsky, o Rodrigo Lefèvre. Nem todos desses bons professores eram arquitetos, como o geógrafo Milton Santos, que foi meu orientador no meu primeiro trabalho de iniciação científica. Eu cursava, também, algumas disciplinas como ouvinte no curso de Letras. Algumas disciplinas que foram muito importantes para mim foi a de Teoria Literária, com David Arrigucci Jr., a disciplina de Literatura também, com a Leyla Perrone-Moisés, dois grandes professores que se tornaram meus amigos, leram meus textos muito tempo depois. Foram importantes na minha formação.

A geografia é muito presente nas suas obras. Isso se deve à sua formação em em arquitetura?

Em todos os meus romances, acho que a construção do espaço deve muito à minha formação como arquiteto, não apenas à minha formação como leitor. A literatura fala sobre a passagem do tempo, mas a maioria dos romances também trata do espaço. “A noite da espera” tem um lado dos espaços de Brasília, do Cerrado, que também estão vinculados ao narrador e aos personagens. Isso está no “Cinzas do norte”, na casa dos “Dois irmãos”, no “Relato de um Certo Oriente”, romances cujos espaços foram elaborados. Em alguns eu até desenhava para chegar à casa que eu queria.

Há algumas correspondências entre a sua vida e a de Martim, narrador e protagonista de “A noite da espera”. Como você bebe da experiência para construir seus romances?

Essa é uma questão difícil de responder, porque a vivência não se confunde com a experiência do narrador. A experiência do narrador é uma experiência que faz parte de um acúmulo de lembranças, de memórias, de leituras, quase de uma tradição. Às vezes essa experiência não tem muito a ver com a vida vivida, já é uma experiência pouco filtrada pelo tempo. Certamente eu não sou nem narrador do “Dois irmãos”, nem o do “Cinzas do Norte”, nem o de “A noite da espera”. São narradores muito distantes de mim, do que eu sou e do meu passado. O narrador, como os personagens, é uma construção da imaginação. São invenções que têm a ver com o que você quer falar. Nesse sentido, a experiência vem de todos os lados, e você não sabe exatamente o que daquilo que leu e vivenciou está no livro. Quando a experiência é muito rala, isso aparece, o leitor sente  falta da experiência do narrador. Mas isso faz parte da própria concepção do que você quer escrever. Não há muita coisa gratuita, não há nada gratuito quando você escreve. As coisas gratuitas a gente corta, ou tenta cortar.

Considerando a relação entre memória e escrita, toda literatura pode ser considerada uma “autoficção”?

Eu não vejo a literatura assim. Na medida em que a vida já está transformada, a literatura não é mais a nossa vida, ela foi transformada em linguagem. O que eu mais admiro nos livros é essa construção, esse artifício, o modo de narrar e fabular. É claro que as experiências e a vida de alguns escritores estão na sua obra. Falando do que é mais visível, isso é inseparável na obra do Faulkner, do Conrad, do Guimarães Rosa, do Graciliano Ramos. No entanto, eles não são aqueles narradores. O Rosa não é o Riobaldo, o Conrad não é o Lord Jim. Mas os autores aproveitaram a experiência deles, o que eles viram, observaram e ouviram, para construir isso. Falar da minha própria vida, da minha experiência direta, não faz muito sentido. Eu acho que nem gostaria de escrever minhas memórias.

Você não faria um “Confesso que vivi”, por exemplo?

Eu poderia até escrever “Confesso que eu bebi”, ou alguma coisa nesse sentido. Eu já bebi muito, lá atrás, e fumei muito também. Muitas coisinhas boas. Mas “Confesso que vivi”, eu não sei. O grande lance é construir o narrador como um outro. Acho que o desafio do escritor é construir esse mundo paralelo, que não é o que nós estamos vivenciando. Eu costumo dizer que a memória e a imaginação são irmãs siamesas.  Nesse sentido, a memória não é um espelho que reflete o passado, a memória é a imaginação. Acho que em todos os meus livros, isso foi muito explorado. Por isso foi difícil construir o Martim. Tinha consciência de que não era minha vida que estava sendo espelhada nele, mesmo porque, para o que eu pretendi escrever, teria que ser mais complexo do que a minha vida. Não sei o que se chama de autoficção, mas eu acho esse movimento um pouco narcisista.

Você está trabalhando há dez anos na trilogia “O lugar mais sombrio”. Como foi o processo de construção do romance?

A ideia inicial surgiu há bastante tempo, em 1980. Eu era muito jovem e tinha pretensão de escrever um romance sobre o período da Ditadura. Só que o período era um passado recente, um quase presente, e não fazia sentido eu escrever. Aliás, eu escrevi, mas não deu certo, achei que ficou muito sofrível. Um amigo meu, que era tradutor, poeta, leu e também não gostou. Era uma crônica política. Para não dar comichão de publicar, eu rasguei, queimei tudo. Então comecei a escrever o “Relato de um certo Oriente” no final de 80. Eu só terminei em 86, 87, e ainda esperei dois anos para publicar. Eu já não era um garoto, tinha uns 35 anos. Eu lembro que foi o David Arrigucci que escreveu a orelha do livro, uma orelha belíssima. No ano que vem, o “Relato” faz 30 anos. É quase uma distração, três décadas. Passaram muito rápido.

Enquanto isso a ideia da trilogia “O lugar mais sombrio” permanecia em gestação?

A ideia de um romance sobre essa vida em Brasília, em São Paulo, me perseguiu durante muito tempo. Quando eu terminei o “Cinzas do Norte”, em 2005, comecei a pensar em “A noite da espera”. Aí o tempo já tinha passado, eu já era outro, o país já era outro. E, no entanto, algumas questões políticas, sociais, estão aí, permanecem.

Quais questões você entende que são latentes em “A noite da espera” e permanecem na vida política brasileira?

A crítica e os leitores viram essa correspondência entre o romance, que fala de um período muito claro, a Ditadura no final dos anos 60 e anos 70, e os dias de hoje. Acho que, estruturalmente, o país não mudou. Eu falo da relação entre os três poderes, da violência, da extrema desigualdade. Houve alguns avanços pontuais, mas, do ponto de vista estrutural, o país, mas também os estados e municípios, é muito violento e autoritário. Isso não acabou. É um Estado em que a repressão, sobretudo aos pobres, aos negros, às minorias, é muito forte. Naquela época, a repressão era muito direcionada à militância que fazia oposição ao regime. Não só à militância armada, aí era uma caça implacável, mas também à militância mais pacífica, que não pegava nas armas. Militância de milhares de estudantes, operários, professores, pessoas da classe média, pobres, até mesmo pessoas de uma certa elite que não admitia viver sob um regime de censura e opressão. Nos anos 70, as migrações para as grandes cidades se acentuaram, parte das grandes cidades se tornaram favelas, houve um aumento enorme da degradação da vida urbana. Durante o milagre econômico, se dizia “vamos esperar o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Isso foi uma falácia. O bolo cresceu para os ricos, e nunca foi dividido.

Considerando esse quadro, como você vê as opções para as eleições de outubro?

Uma das mais importantes opções para a presidência é de uma extrema direita perigosíssima, assustadora. É uma coisa maluca, porque um cara de extrema direita, que vive da sua posição de deputado federal, ele e os filhos, que tem uma ideologia estatizante, contratou um economista ultraliberal para ser o seu mentor ou futuro gestor. É uma contradição enorme. Jorge Luís Borges diria “Eles se desconhecem um ao outro”, acho que os dois nunca conversaram seriamente.

A violência passou a ser desejada como uma política de Estado?

Eu entendo que um carioca apoie a intervenção militar, porque a situação lá é insustentável. A violência é enorme em todo o Brasil. Acho que a situação é tão degradante, que a força desses grupos paramilitares, milícias, é muito grande. Há causas para isso. Agora vão investir um bilhão na intervenção militar. Eu me pergunto, com um bilhão de reais, quantas creches, escolas, postos de saúde e áreas de lazer para a população pobre não poderiam ser construídas e mantidas? É o mesmo que a Copa do Mundo. Quantos bilhões foram investidos em estádios que não servem para nada? O de Manaus é um deles, não serve para nada, e metade de Manaus é favela. Então, a elite política e econômica não quer mudar, e ela está pouco ligando para a violência. No fundo essa intervenção militar é um golpe, um golpinho publicitário. Eu falo um golpinho, porque é claro que não vai resolver. E também uma forma de gastar dinheiro, de contemplar a indústria bélica.

A legalidade se tornou uma aparência que permite fazer qualquer tipo de atrocidade?

É um teatro macabro.

Em março de 68, após a morte de Edson Luís, ocorriam várias manifestações em Brasília. Martim, protagonista de “A noite da espera”, escolhe ir ao cinema ou remar no lago Paranoá a participar das manifestações contra o regime. De que maneira esse narrador outsider contribui para a narrativa?

O Martim, na verdade, simboliza a maioria dos jovens daquela época, porque a maioria dos jovens não estava envolvida diretamente com a Ditadura ou contra a Ditadura. É um engano a gente pensar que todo mundo estava ligado, não estava. A maioria era um pouco como o Martim. Só que o Martim tem uma particularidade, que é o drama dele, a angústia dele com a separação da mãe e um embate crescente com o pai. O grande inimigo ainda não era a Ditadura, era o pai.

Mas Rodolfo, pai de Martim, também representa a Ditadura, ele a apoia.

Rodolfo é a figura desse macho brasileiro patriarcal, reacionário, que se torna agressivo, raivoso. Aliás, uma figura muito em voga hoje em dia. Ele seria uma espécie de hater, de direita, nos dias de hoje. Só que eu conheci esses haters naquela época. Não na minha família, felizmente, mas no meu entorno, nas minhas amizades, os pais de meus amigos, professores, alguns que substituíram os verdadeiros professores, vários delatores. Então, o Martim está um pouco nesse limbo, na fronteira entre o entendimento do que está acontecendo e a perplexidade em relação ao sumiço, à ausência da mãe.

Os amigos com quem Martim escreve a revista Tribo têm origens sociais muito diferentes. Qual a importância dessa diversidade dos personagens para a história?

Do modo como eu vejo o romance, ele deve ter um quadro histórico mínimo. Eu não quis limitar a galeria de personagens ao plano piloto. O filho do embaixador tem pouco a ver com o Nortista, por exemplo, que é filho de um pequeno funcionário em Manaus. Eles pertencem a classes sociais diferentes. Eu quis entender como o plano piloto funciona em diálogo ou oposição às cidades satélites, porque para você entender o plano piloto você tem que entender o que está em volta.

Dessa maneira, os personagens constroem uma geografia social de Brasília.

As cidades-satélite são a periferia de Brasília. É como a zona Leste ou a zona Sul em São Paulo. Hoje, elas são grandes cidades, algumas cidades-dormitórios, outras cidades-proletárias, outras se transformaram em cidades de classe média. Essa espacialidade, essa geografia, também tem a ver com o entendimento das personagens e suas vidas. E todos estão entrelaçados. A mãe do Lázaro, por exemplo, trabalha na casa do embaixador. Era um pouco assim. De repente, a mãe de uma amiga, que era militante, podia ser uma delegada de polícia.

As diversas origens sociais dos personagens tornam seu romance complexo.

No romance, eu falo do autoritarismo da esquerda, de uma certa esquerda, isso também existe, como existe até hoje. O reino dos bons contra os maus não cabe no romance. Há fraturas, há desencantos há contradições o tempo todo. No próprio grupo político da tribo havia dissensões, censura, muitos desacordos, traições, muitas misérias também, uma miséria moral. Não fazia sentido construir uma coisa chapada. Aliás, antes de escrever eu penso muito nisso. Porque a vida, que é mais complicada que a literatura, sem dúvida, não é assim.

De que maneira Áurea, a Baronesa, representa uma política de personalidades e não de ideias?

A Baronesa é vazia, é camaleônica. Ela quer se dar bem com todo mundo, sempre pensando nos interesses dela. Ela se dá com os políticos da Arena e da oposição, do MDB. Olha o que foi parar, o MDB? Acho que é a Vana, a sobrinha dela, que diz “Ela só trata bem os cordeirinhos”. Porque os outros foram banidos, como Márcio Moreira Alves. Vários foram assassinados, Rubens Paiva desapareceu. A Baronesa é essa figura que quer ser cordial com todo mundo, mas sempre pensando nela. Ela dá a entender que consegue aquele apartamento de alguém que foi expulso, foi exilado. Ela está no meio das negociações, no meio dos rolos todos.

Quanto à estrutura, há um misto de gêneros no romance, como cartas, páginas de diários. Como essa estrutura se relaciona tanto às fraturas do contexto social, quanto às fraturas pessoais do Martim?

A forma é sempre o mais difícil de se encontrar para escrever um romance. A arquitetura da narrativa em “A noite da espera”, não poderia ser outra, porque tudo era muito  fragmentado. Naquela época havia muitas interrupções. Por isso, percebi que a estrutura fragmentada, voltada para anotações salteadas, cartas, seria mais ajustada ao modo de narrar. A carta em si já significa uma ausência, quase uma nostalgia. Isso vai ser intensificado no segundo volume, em que entram diários de outros personagens, de mulheres e homens, rapazes e moças, que já seriam um outro lado da tribo, uma outra tribo.

Essa descontinuidade nos gêneros também se traduz em  uma descontinuidade temporal?

Essa estrutura é bastante descontínua no espaço e no tempo. Há o tempo de Paris, quando Martim está revisitando e eventualmente corrigindo as anotações do passado, que é uma espécie de presente da escrita. Há o tempo de Brasília, quando ocorre o registro dessas anotações. Há um terceiro tempo, que é o da memória. Há um tempo ainda anterior, que é a memória dele e da família, da infância na rua Tutoia, em São Paulo, da Baixada Santista. Esses tempos estão entrelaçados. Não sei se essa forma que encontrei é a melhor, mas é a que mais passou para mim um teor de verdade. No fundo, a ficção deve expressar essa verdade, que não é uma verdade ontológica, mas são as pequenas verdades das relações humanas.

Há alguma previsão de lançamento dos próximos volumes da trilogia?

Eles foram escritos ao longo de dez anos, agora estou revisando o segundo volume para tentar publicá-lo no segundo semestre deste ano, que é um ano esquisito, cheio de tensões. É um volume maior, que me deu mais trabalho não só pela extensão, mas pelo próprio desenvolvimento dos personagens, da narrativa.

É difícil ler os seus livros e não pensar no espelhamento dessas tensões.

Acho que os autores às vezes nem pensam na repercussão de seus livros no presente. Os livros traem os autores e ecoam no presente. É como se a própria narrativa dissesse “Eu não quero só falar do passado. Eu estou aqui para falar dos horrores do presente, da crueldade, da violência”. E também dos amores, porque sem isso a gente não sobrevive.