Grupo de Intervenção Rápida é o terror das mulheres presas em São Paulo

Encapuzados, agentes fazem revistas-surpresa às celas femininas; ação é inconstitucional

Presídios femininos sofrem com superlotação. Foto: Pastoral Carcerária/Divulgação

Por Caio Nascimento

“A comida é horrível. O hambúrguer tem gosto de estragado e já achei até rato e barata no escondidinho de frango que fazem para a gente. É muito ruim. Só dá para sobreviver lá dentro às custas de pão e bolacha”, relembra Fabiana, 43 anos, que saiu no final do ano passado da Penitenciária de Santana, na capital paulista, após sete anos presa.

Negra e lésbica, ela chegou a dormir no chão devido à superlotação e viu colegas novatas pagarem quantias em dinheiro às presas veteranas para dormirem juntas na mesma cama. “Já cheguei a morar com até cinco mulheres a mais dentro da cela.”

A realidade de Fabiana é a mesma de muitas outras presas. Segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo, dez dos 19 presídios e centros de detenção provisória femininos estão superlotados, havendo um déficit de 1017 vagas em todo o Estado.

Alessandra, de 24 anos, saiu da Penitenciária Feminina de Santana em 2014, após três anos detida. Moradora de São Miguel Paulista, aos sábados ela leva mais de uma hora para chegar à unidade e visitar a namorada.

A jovem, que tem ensino Médio incompleto, afirma que ocorrem violações por parte do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), polícia da SAP que realiza blitz periódicas dentro das unidades desde 2002. Encapuzados e munidos de armas, sprays de pimentas, gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral, os agentes praticam agressões verbais e violência material contra as presas.

“Quando o GIR entra, ele arregaça. As mulheres jogam cachaça e celulares pela janela com medo de apanhar e de ir para o castigo.  Quando eles entravam eu cheirava pó, ficava na brisa, para passar o medo”, recorda Alessandra.

Defensoria

Segundo o coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc), da Defensoria Pública de São Paulo, Leonardo Biagioni, os itens apreendidos nas investidas do GIR precisam ser detectados antes de entrar, para que o problema seja sanado definitivamente. “As intervenções violentas do GIR não resolveram a entrada de objetos ilegais ao longo dos dezesseis anos em que ele existe”, afirma.

O coordenador auxiliar do Núcleo de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública, Leonardo Biagioni, em fila de visita da Penitenciária Feminina de São Paulo para atividade conjunta de ONGs dos Direitos Humanos para com as famílias das mulheres presas. Foto: Caio Nascimento

Segundo ele, “nas visitas da Defensoria às unidades prisionais, recebemos denúncias de agressões, xingamentos e vimos que as tropas misturavam a comida das presas com sabão em pó. As intervenções rápidas são humilhantes e vexatórias.”

O defensor alerta: as ações do GIR são ilegais e não estão descritas no artigo 144 da Constituição Federal, que regulamenta os órgãos de Segurança Pública. “A única normativa que ampara o GIR é uma resolução interna da SAP. A Lei, portanto, deixa claro que é a Polícia Militar que deve atuar em casos de violações e crimes dentro de um presídio”, explica Biagioni.

A partir de relatos de mulheres negras entrevistadas em 2015 para o estudo Rés Negras, Juízes Brancos, a advogada Dina Alves afirma que o GIR é a expressão máxima de como o Estado interfere no corpo feminino. “As tropas são compostas por homens fortemente armados que retiram das mulheres não só itens ilícitos, mas também fotos de seus filhos, companheiros, familiares e as obrigam a queimar as fotos.”

A egressa Alessandra lembra que os policiais a xingavam de vagabunda e mandavam as presas correrem. “Para eles, eu era nojenta, cadela, vadia. Já ouvi de tudo aí dentro.”

No relatório Mulheres em Prisão, de 2017, elaborado pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), a detenta Diana narrou a violência física do GIR. “Os homens entram jogando bala de borracha, bomba, você apanha. Na hora que você passa pelo corredor, eles já vão te batendo. Estávamos em uma cela pequena, onde ficam 30, 40 minas, uma amontoada na outra e eles jogam gás de pimenta.”  

Em 2015, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, visitou a Penitenciária Feminina de Santana e denunciou, com imagens, a atuação do GIR. “As presas informaram que foram agredidas com cassetetes e que os cães eram atiçados para atacarem”.

Ação ilegal

Alessandra visita sua namorada aos sábados na Penitenciária Feminina de Santana, onde também esteve internada. Foto: Caio Nascimento

A Lei 4.898/65 considera abuso por parte do Estado “submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou constrangimento não autorizado”. Está previsto ainda como ato lesivo o abuso ou desvio de poder praticado contra presas e presos.

Em resposta às violações, a SAP informou à reportagem do JC que “todos os servidores são preparados para a preservação dos direitos das pessoas presas e para cobrar o cumprimento dos deveres e obrigações previstos na legislação brasileira. Podemos afirmar que no sistema penitenciário paulista não há violação de direitos humanos.”

No ano passado, Alessandra ficou sabendo que um casal combinou de se suicidar dentro do pavilhão 12 da Penitenciária Feminina de Santana. Mas uma delas desistiu do ato ao ver o sofrimento da companheira perdendo a vida. “Tem mina que não aguenta os abusos. Maior parte das agentes que estão aí dentro só pensam em arrastar.”

Fabiana, entrevistada no início desta reportagem, afirma que quando estava presa viu funcionárias ameaçando bater no rosto das detentas. “É muito abuso de autoridade. A maioria das agentes é grossa, ignorante, sem educação. Elas gostam de provocar. Cutucavam de lá, eu cutucava de cá. Se elas não têm respeito comigo, eu não sou obrigada a respeitar”.

A egressa acredita que esses comportamentos incitam tragédias. “Vi meninas novinhas se matando porque não aguentavam mais a humilhação.”

Diante disso, a advogada Dina Alves acredita que o suicídio é uma porta aberta para as presas acabarem com o sofrimento. Para a advogada, as mortes estão longe de ser raras. Em suas visitas, ela viu telas de proteção entre um andar e outro para as presas não se jogarem “justamente porque há o risco iminente de suicídio”.

No ano passado, foram registrados quatro suicídios na unidade de Santana. A SAP disse à reportagem que são ocorrências isoladas. Informou também que há equipe para atendimentos psicológicos e ocorrem tratamentos com psicotrópicos para prevenir tendências suicidas.

“Eu tenho que me dopar”

Os tratamentos com psicotrópicos geram casos de uso abusivo de remédios como Rivotril, Diazepan e Fluoxetina. No relatório Mulheres em Prisão, do ITTC, os pesquisadores concluíram que o uso deles é uma ferramenta para dar conforto às presas por meio do sono. “Com o corpo e a mente cada vez mais fragilizados, o número de mulheres que fazem uso de remédio controlado é considerável.”

Uma detenta relatou à ONG que os psicotrópicos são a única forma de lidar com o cárcere: “tomo fluoxetina para dormir desde que fui presa. São três fluoxetinas de manhã, para vir trabalhar, porque é muito complicada a minha situação. À noite, eu tomo Diazepan e Nervosin. Eu tenho que me dopar.”

A SAP informa que existem 93 presas no Estado com problemas mentais. Elas estão internadas nos dois Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha. A ala não tem homens, que estão em “desinternação progressiva”. Leonardo Biagioni associa essa diferença de gênero ao menor número de visitas e o abandono familiar que muitas mulheres encarceradas sofrem.

“Não existe ressocialização”

De acordo com a SAP, das 12.289 presas paulistas, apenas 36,5% trabalham dentro dos presídios, 11% participam da educação formal e 6,5% estão em cursos profissionalizantes. Os baixos índices, entretanto, contrastam com o número de Centrais de Alternativas Penais e Inclusão Social (Ceapis) criadas pelo estado de São Paulo. Desde 2015, o governo criou 23 unidades.

Leonardo Biagioni afirma que esses dados controversos representam a falácia da reintegração. Segundo ele, não existe ressocialização, uma vez que não há como ressocializar alguém que não teve direito à sistemas de educação, saúde e lazer de qualidade. “A prisão é apenas um sistema de vingança. O que a Defensoria Pública enxerga é a falta de estrutura física e educação no cárcere”, diz. O relatório Mulheres e Prisão, do ITTC, calcula que, no Brasil, 55% das detentas têm ensino fundamental incompleto e 40,6% não possuem profissão.

Fabiana saiu recentemente da delegacia sem conseguir retirar seus documentos na Justiça. Foto: Caio Nascimento

Fabiana conta que trabalhar dentro do presídio é apenas uma forma de sobrevivência.  Ela fazia unha de outras presas e recorda que o dinheiro era usado apenas para fazer compras no mercado da unidade. Os produtos fornecidos pela administração são de “baixa qualidade”. “A gente recebia papel higiênico, sabonete, absorvente, mas eu não conseguia usar. A pasta de dente, por exemplo, era insuportável. Acho que ninguém tem coragem de usar aquilo”, recorda.

Três meses depois de sair da penitenciária, Fabiana vive de doações, mora de favor e trabalha como manicure autônoma. Apesar de tentar se reintegrar na sociedade, ela explica que o juiz não deu baixa em sua multa que os ex-presos pagam ao Fundo Penitenciário Nacional , o que a impede de resgatar seus documentos. “Já fui mais de vinte vezes ao Fórum Criminal da Barra Funda e à Delegacia Estadual de Investigações Criminais, mas não consegui ver o meu processo”, reclama. Sem concluir essa etapa, ela não pode arranjar emprego com carteira assinada.

Segundo Dina Alves, a baixa escolaridade e o fato de apenas cerca de 800 detentas estarem em cursos profissionalizantes prejudicam a aceitação delas no mercado. “As presas saem da cadeia, mas a cadeia não sai delas”, aponta. “A mulher é presa por anos, adquire violências psicológicas e físicas praticadas pelos próprios funcionários, trabalha por sobrevivência e um dia sai totalmente destruída. Nesse contexto, fica difícil ser aceita e acolhida. O próprio sistema produz a rejeição.”

Estado acredita que haverá vagas para todas as detentas

Entre 2000 e 2014, a SAP construiu 94 unidades femininas de regime fechado, semiaberto e provisórias, mas a falta de vagas não foi suprida. Segundo o coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc), da Defensoria Pública de São Paulo, Leonardo Biagioni, um dos motivos para a superlotação é a aplicação da Lei de Drogas (nº11.343).

Aprovada em 2006, a legislação diferencia a usuária da traficante, prevendo o encarceramento só desta última, de cinco a 15 anos. Para as mulheres que só consomem drogas ilícitas, a norma prevê a prestação de serviços à comunidade, políticas de saúde pública e medidas educativas.

Advogada Dina Alves, autora da pesquisa “Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe da punição em uma prisão paulistana”. Foto: Caio Nascimento

Para Biagioni, a distinção entre traficante e usuária é feita por critérios subjetivos. “As autoridades nem sempre têm fundadas suspeitas sobre um crime e acabam aumentando o número de presidiárias para além do normal por meio de abordagens em flagrante.”

A SAP acredita que a superlotação terá fim com a inauguração dos complexos de São Vicente e Guariba. Eles gerarão 1660 vagas. No entanto, a advogada especialista em sistema carcerário feminino paulista, Dina Alves, alerta que essa expectativa é falsa. “A construção de mais presídios não vai resolver, porque nosso sistema de justiça é punitivista e arraigado por uma cultura de superencarceramento de mulheres.”

A afirmação da jurista se baseia nos dados do último Infopen Mulheres. O relatório mostra que a prisão desse público aumentou 503% entre 2000 e 2014. Sete em cada 10 mulheres foram para cadeia por tráfico. Quanto ao perfil, 80% delas não têm antecedentes criminais.

No estudo Prisão Provisória e Lei de Drogas, do Núcleo de Violência (NEV) da USP, um delegado, em anonimato, aponta a distinção de classe social feita por policiais no momento da prisão em flagrante. “A diferença é estabelecida de acordo com o poder aquisitivo do apreendido. Se ele possui poder aquisitivo alto e é pego com dez papelotes, ele pode ser usuário. Já se uma pessoa de poder aquisitivo baixo é pega com a mesma quantidade, é mais fácil acreditar que ela seja traficante, pois ela não tem capacidade financeira de comprar a droga.”

No ano passado, 64% de todas as prisões feitas no estado de São Paulo ocorreram em flagrante. A porcentagem corresponde a 133.670 detenções. Para Biagioni, isso acaba com a chances de geração de provas técnicas legais quando os casos são examinados. O último relatório do ‘Infopen Mulheres’ calcula que 16.800 presas (40%) são provisórias e ainda não foram julgadas em todo o Brasil.