O que muda com a nova diretora da Poli?

Liedi Bernucci, primeira diretora mulher da Poli em 124 anos, durante entrevista ao Jornal do Campus. (Foto: Ana Helena Corradini)

Por Matheus Morgado

No último dia 7 de março, às vésperas do Dia Internacional da Mulher, a Escola Politécnica da USP elegeu sua primeira diretora em 124 anos de história. Liedi Bernucci venceu a eleição, na qual formava chapa única com Reinaldo Giudici, candidato a vice-diretor, obtendo 200 dos 217 votos válidos.  Com uma trajetória de sucesso dentro da Poli, desde a época de aluna até a diretoria, Liedi acaba de quebrar um paradigma de mais de um século em uma das instituições mais marcadas pelo conservadorismo dentro da USP.

Liedi sabe de cor os números. “Lembro-me bem, éramos 29 alunas e 620 alunos”. De 1977, ano de seu ingresso, até hoje, o percentual de alunas na instituição cresceu de 5% para 20%. Caso esse crescimento pareça lento, Liedi defende que “é lento em qualquer lugar do mundo, mas vem melhorando”.

A diretora coleciona recordes: foi a primeira mulher chefe de seu departamento, primeira vice-diretora, primeira mulher eleita “Professora do Ano”. O currículo impressiona e, ao mesmo tempo, deixa no ar uma sensação de ponto fora da curva. Liedi reconhece que, para que sua eleição possa ser representativa de uma mudança mais ampla, deve haver uma ascensão de outras docentes a cargos superiores.

“Temos 13% de professoras no corpo docente. Sem dúvida, uma dessas mais jovens irá ascender um dia”, projeta a diretora. “O que eu acho importante não é a questão pessoal, mas poder servir como um exemplo para outras mulheres que gostariam de se candidatar, seja para cargos públicos, seja no mercado de trabalho como engenheira.”

É unanimidade, entre as alunas com quem o Jornal do Campus conversou, que ter uma mulher no cargo mais alto da Escola é importante. No entanto, muitas se resguardam quanto aos efeitos práticos, seja pela improbabilidade de uma só pessoa promover grandes mudanças, seja pela descrença de que Liedi represente uma mudança de fato.

“Podem ter consequências disso. Por exemplo, tem professor que até hoje chega na aula e fala que não consegue aceitar mulheres na engenharia. A partir do momento que a chefe dele é uma mulher, esse tipo de comportamento pode mudar e eles vão ter um pouquinho mais de vergonha na cara de falar essas coisas”, conclui uma das estudantes.

O coletivo feminista Politécnicas (R)existem espera que “como politécnica, Liedi dê atenção a assuntos relevantes, como dificuldades enfrentadas pelas mulheres e o papel da Escola Politécnica em garantir a todos o direito de estudar, principalmente a todas as alunas”.

Saúde Mental

Desde que entraram em vigor, em 2014, as mudanças da nova estrutura curricular da Poli, a questão da saúde mental dos alunos veio à tona com mais força. O assunto tem gerado debates, mas surte pouco ou nenhum efeito prático entre a comunidade uspiana.

O aumento da carga horária semanal, apontado como um dos fatores que estaria agravando a situação, é desmentido por Liedi: “pelo contrário, a carga diminuiu”. A diretora ainda credita a situação a um despreparo emocional dos alunos.  “Na minha geração, não é que não tivessem problemas psicológicos, mas as pessoas eram mais resilientes. As pessoas entravam na Poli, sabiam que era difícil, mas queriam ser engenheiras, ascender profissionalmente, e sabiam que teriam que pagar aquele preço.”

Para conter a situação, a diretora propõe uma série de medidas, incluindo uma espécie de avaliação de rendimento escolar, praticamente pronta, segundo ela. “Para o aluno saber que está se dando mal nas disciplinas, antes de ele incorrer em algum artigo que até o leve para a saída, para a evasão, ou expulsão.”

Além disso, o aperfeiçoamento didático dos professores e a inclusão de mais espaços físicos para estudos, favorecendo vínculos entre os alunos, também são citados por Liedi. “Os grupos de extensão formam vínculos. O que ele fizer nesses grupos de extensão ‘positivos’, como eu os chamo, ajuda a ficar aqui e se equilibrar emocionalmente.”

Também por causa das mudanças na estrutura curricular, os estágios foram dificultados para os futuros engenheiros, que, por vezes, só conseguem iniciar as experiências profissionais por volta do quinto ano de graduação. “Vocês precisam olhar o outro lado, o lado da empresa. Ela tem uma mão de obra excelente e barata, que é o nosso aluno, para fazer o que quiser. O aluno começava a faltar aqui, a ser reprovado na escola. Tinha aluno que nunca se formava.”, defende Liedi, que completa: “o mercado está desequilibrado, quer que o estagiário faça o que o engenheiro devia fazer, tira o emprego de um engenheiro, é mal pago, e vai mal na escola. É bom fazer estágio, então?”

“Está na mídia”

Uma das alunas com quem conversamos prefere não revelar o nome. Ela afirma que Liedi, assim como a maioria dos docentes da Poli, viveu ali, enquanto aluna, em um contexto diferente. Por isso, haveria uma visão “deturpada” do que são e representam os movimentos estudantis hoje.

“Eu era do movimento estudantil. Era uma outra época, sem dúvidas…” Liedi, que durante a graduação atuava no Centro Acadêmico da Engenharia Civil, diz enxergar uma despolitização desses grupos. “Eu vejo muito pouca discussão do que é o país hoje. Eu lamento isso.”

Em contraste com a visão da diretora, para a aluna ouvida pela reportagem do JC “a gente está em um momento do movimento estudantil em que as coisas estão mudando e as pessoas estão mais politizadas. Antes a Poli era mais passiva em tudo.”

A realização de festas é ponto sensível para a nova gestão, que se posiciona veementemente contra e justifica: “Há um problema de tráfico de drogas que se acentua com a realização de festas. No passado, além daquelas em que houve morte, tiveram festas em que houve estupro. Houve estupros aqui. A gente não vai apoiar isso.

Questionada se aumentar a segurança e o policiamento resolveria a questão, a diretora é categórica: “é um monte de filho de papai que quer ser protegido, quer se divertir, e alguém ainda fazendo a guarda dele, a proteção dele.”

No entanto, o principal problema que Liedi quer evitar são os custos para a imagem institucional. “Está na mídia. A mídia expõe a USP, está contra a USP. Isso é justo? Veja o que as pessoas pensam e o que elas pensavam há 30, 40 anos. A Poli era referência. Agora, se a gente começa a sair no jornal com escândalos, problemas, estupro, morte, a população fica contra o ensino público.

Quando é retomada a questão do machismo na Poli e dos casos de estupros, há uma mudança em seu discurso. “Eu não sei se teve ou não. Foi o que a menina falou…”

Para essas e outras decisões, Liedi diz se apoiar nas orientações da equipe jurídica. Por isso, em casos de violência, a Poli “não pode fazer nada sem um boletim de ocorrência, nem juridica, nem administrativamente. Eu não posso ir contra o jurídico”, reitera.

Portas abertas

Por mais de uma vez, Liedi insiste em dizer que a diretoria está de portas abertas para as alunas da Poli. Elas devem se sentir seguras para relatar possíveis casos de abusos e assédio. “Tem situações que eu fico realmente… Pelo relato das alunas, eu acho que aquilo é injusto com as meninas.”

Em outros momentos, porém, o tom firme com que emite opiniões pode bloquear de antemão a comunicação com os estudantes, mesmo quando tenta dizer o contrário: “Se eles quiserem me convencer de outras coisas, já falei, vamos conversar sobre o que eles acham que a gente deve fazer, mas o que eu falei [sobre as festas] são questões de princípio. Vem falar que eu sou contra… Quem é que leva o nome da USP para a mídia de uma forma negativa? Sou eu?”

A pergunta que guiou esta pauta – “afinal, o que muda com Liedi?” – foi feita no final  da entrevista, ao que respondeu: “Eu prefiro que depois me falem, daqui a um ano, dois anos, se mudou, se não mudou. Esperanças de mudar eu tenho, mas pelas perguntas que você me fez eu acho que tem muita gente que não quer mudar, que quer ver essa situação assim pra ficar reclamando.”