Positivo, inoperante

Ilustração: Daniel Miyazato

Por Barbara Cavalcanti 

Reuniões e idas a clientes mal educados. Metrôs. Idas a clientes mal educados. Metrôs. Idas. Mal educados. Mal. Enfim.

O transporte público estava vazio para uma segunda-feira e nada mais importava, a não ser meu biscoito de polvilho mole aberto no fim de semana. A imagem da minha mãe me dizendo para comer direito invadia minha mente quando as portas da estação Fradique Coutinho abriram. No meu fone branco, um mundo sonoro à parte, e no exterior a sensação de que São Paulo é tão auto suficiente quanto dependente de si mesma. Vai entender…

Fui em direção à escada rolante que parecia a famosa saída no fim do túnel com a luz do sol mostrando a todos por onde ir. Não sei por qual motivo comecei a traçar pequenas competições internas irrelevantes comigo mesma para ver se a agonia de não chegar ao fim daquela jornada passava mais rápido: “tenho que acabar esse lance de escadas antes daquele senhor de cabeça branca! Tenho que passar pela roleta antes da criança com rabo de cavalo!”

Até meu trabalho, parecia tudo normal. Cheguei à minha mesa e um colega passou: “toma esse chocolate pra você, só come devagar, foram quatro golpinhos”. Ri e fiquei pensando: quatro golpinhos

Comecei a trabalhar e o noticiário político estava a todo vapor. Nunca tinha reparado no quanto era bombardeada de informações. Como meu cérebro conseguia processar tantas coisas ao mesmo tempo? Respirei fundo e olhei para o meu chocolate. Um bombom embalado em um papel brega vermelho e um selo em cima onde se lia “cerejão”.

Quem dá o nome de “cerejão” para um bombom? Fiquei rindo sozinha e decidi comer o doce. Os golpinhos me deram a indigestão política que eu não desejava. Por que aqueles quatro golpinhos ficavam na minha cabeça? Meu colega perguntou:

            – Tava bom?

– Opa, delícia!

“Ruim que dói”, pensei. Pensei mais: a falsidade da boa convivência corporativa é digna de uma pesquisa psiquiátrica. O zoológico humano mascarado de bons modos me dominou de uma forma que eu nem me reconhecia. Acho que foi nesse ponto que os golpinhos me pegaram.

Será que eu ouvia a palavra “golpe” e ignorava? Será que eu simplesmente achava engraçado o fato de que o meu país estava completamente fora de controle político e as pessoas fazem piadas com bombons horrorosos chamados cerejões?

Olhei a embalagem amassada em cima da bancada e senti nojo. Comecei a ficar ansiosa, com repulsa. O que eu estava sentindo? Sentei na mesa e falei com a Mônica, a menina viciada em anime que senta do meu lado:

          – Você sabia que o Brasil está entrando em colapso político e as pessoas estão brincando? Agora o real se chama ‘golpinho’, você sabia disso, Mô?

Olhando para a tela do computador, inexpressiva, Mônica me respondeu:

           – Aham.

           -Aham – murmurei comigo mesma. Vários ahans e a vida está como está.

O barulho de teclado dominava o espaço. Vários robôs digitando fixados na tela do computador e nada nem ninguém se importava com os meus golpinhos, muito menos com o meu bombom “cerejão”.

Busquei no Google a palavra “golpe” e coloquei na opção de notícias. Jesus amado! Meus olhos doíam. Golpe da conta de luz. Golpe militar. Golpe do sequestro. Golpe político. “Gente, quantos golpes estamos vivendo?” Comecei a ficar agoniada.

Os barulhos das mãos batendo nos teclados estavam cada vez mais altos. Levantei e fui até a copa. Uma das copeiras, carinhosamente apelidada por mim de Kiss, tomava café calmamente. Ela percebeu meu nervoso e perguntou:

          – Que foi, mulher?

Demorei alguns segundos para responder. Olhei para ela e comecei a desabafar. Estava quase acabando:

          -…então, Kiss, vivemos em tempos de golpes, sabe?.

          – Aham – ela me respondeu. “Aham”, novamente.

Peguei meu café e voltei para a mesa. Acabei todo o trabalho, fui em direção ao metrô pensando que faz 54 anos que ocorreu o golpe militar. Vivemos golpes. Até mesmo golpes de luz. Quem diria. Eu olhava para os lados e só imaginava a palavra “golpe”.

No caminho, nada novo: mais uma vez a rotina, o metrô estranhamente vazio para uma segunda-feira e eu enfurecida. Até que entraram umas meninas no vagão e sentaram do meu lado. Resolvi conversar, conferir se eu estava realmente ficando louca. Uma felicidade passageira tomou conta de mim quando elas compartilharam um sentimento de estranhamento em relação a tudo que estava acontecendo no país. mas então disseram:

         – Vai ter Copa e ninguém tá falando nada ainda, né?.

Fiz uma careta e respondi:

         – Mas você sabe que o Brasil está passando por um processo de turbulência política, né?

         – AHAM – me responderam. O que falaram a partir daí fui incapaz de ouvir.

Se não fosse já meandros do mês, eu diria que era piada de primeiro de abril. Cheguei em casa com uma sensação de derrota por saber que cada “aham” me dava uma espécie de facada. Inertes e inoperantes.

“Assistindo a um belo espetáculo”, pensei comigo sobre meu dia.

Peguei meu celular e comecei a ver textos políticos no Facebook, pessoas engajadas querendo possíveis mudanças políticas no Brasil.

“Aham”, pensei.

Desliguei o celular, virei e dormi.