USP manteve órgão ilegal de investigação na ditadura

Durante a ditadura, 10% dos mortos e desaparecidos políticos, exatamente 47 pessoas, eram ligados à Universidade de São Paulo

Invasão da Faculdade de Filosofia, outubro de 1968. Imagem: Arquivo Brasil Nunca Mais.

Por Vitor Garcia

A reitoria da Universidade de São Paulo (USP) manteve um setor de investigações durante a ditadura, a Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), considerado irregular até pelo temido órgão do regime militar, o Serviço Nacional de Informações (SNI). A finalidade da AESI era investigar professores, funcionários e alunos supostamente subversivos. Durante a ditadura, 10% dos mortos e desaparecidos políticos, exatamente 47 pessoas, eram ligadas à Universidade.

Essas são duas das principais conclusões da Comissão da Verdade da USP (CV-USP), que lançou recentemente o relatório final após quase cinco anos de trabalho. O resultado é apresentado em onze volumes, que reúnem documentos e depoimentos de pessoas ligadas à Universidade no período da Ditadura.

O destaque fica com o exemplar sobre a AESI, responsável pelo monitoramento e triagem no interior da USP. Há também volumes dedicados exclusivamente a cinco faculdades: Medicina, Arquitetura e Urbanismo, Direito, Filosofia, Ciências e Letras, além da Escola de Comunicações e Artes.

De acordo com a presidente da Comissão, Janice Theodoro, “resgatar essa história permite que se compreenda quais foram os mecanismos utilizados pelo Estado para impedir a existência do pensamento crítico na sociedade e na USP”.

Os embates na Universidade, no entanto, não se restringiam apenas à administração. “Em praticamente todas as unidades havia uma tensão entre dois eixos de conflitos superpostos: partidários e opositores do regime militar e partidários e opositores da reforma progressista da universidade”, explica Maria Hermínia Tavares de Almeida, também membro da Comissão.

A CV-USP foi instituída no dia 7 de maio de 2013, com mandato inicial de um ano, mas se estendeu. Posteriormente, a Comissão passou a contar com financiamento da Fapesp e teve a presidência transferida do professor Dalmo Dallari para Janice Theodoro.

Imagem: Comissão da Verdade da USP

Órgão ilegal

Em meio às violações praticadas pela ditadura civil-militar, a CV-USP constatou que um dos braços da cadeia de comando eram as AESIs, estabelecidas nas universidades. A partir desses órgãos, “as instituições realizaram perseguições, eliminaram opositores políticos por meio de cassações, impediram a celebração de contratos de trabalho e realizaram detenções ilegais e arbitrárias, desaparecimentos forçados, torturas, execuções e ocultação de cadáveres.”

Maria Hermínia explica que a Comissão constatou também a existência de uma vigilância permanente na USP. “Agentes policiais relatavam o que acontecia em assembleias estudantis e mesmo em reuniões menores e fechadas”. Ela salienta que embora houvesse pressão para que USP e Unicamp criassem AESI, o Ministério da Educação havia determinado a criação desses órgãos apenas em universidades federais.

Na USP, a decisão de criá-la partiu diretamente do reitor Miguel Reale, em 1972. O órgão tinha como objetivo “realizar triagem ideológica de alunos, professores e funcionários”. Ao mesmo tempo, a Unicamp, sob a reitoria de Zeferino Vaz, não criou seu órgão de perseguição.

O relatório da CV-USP apresenta ainda um documento que demonstra que a AESI foi criada sem autorização do SNI. “Nunca havia ficado claro que o reitor autorizara a montagem de um serviço de informação dentro da USP, mas com o documento, a responsabilidade pode ser atribuída e isso é fundamental”, salienta Janice. “A sala da AESI era inclusive no bloco da Reitoria, ao lado da sala do reitor.”

O órgão era chefiado por Krikor Tcherkesian, que mantinha frequente contato com o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), como demonstra um dos documentos levantados pela CV-USP, o livro de entrada e saída. Ao longo das gestões Reale, Orlando Marques de Paiva e Waldyr Muniz Oliva, a AESI produziu inúmeros informes que eram compartilhados com o SNI, as Forças Armadas, o Deops e as polícias.

Para esta reportagem, o Jornal do Campus não conseguiu localizar Tcherkesian. No caso dos reitores citados, Muniz Oliva preferiu não se manifestar, por estar fora do país por tempo indeterminado. Os demais reitores faleceram.

O livro de controle de entrada do DOPS/SP contém o nome de Krikor Tcherkesian, chefe da AESI, em diversas datas. Segundo o relatório, “coincidentemente ou não, consta um registro de Krikor entrando no DOPS no dia 23/04/74”, um dia após Ana Rosa Kucinski, ex-professora da USP, ser presa pelo órgão. Imagem: Comissão da Verdade da USP

Perseguições

A vigilância na USP gerou casos de prisão, morte, desaparecimento, privação de trabalho, proibição de matrícula e interrupção de pesquisas. Além disso, a AESI trabalhava junto à Coordenadoria de Administração Geral (CODAGE), responsável pelo andamento dos processos. Seu diretor era Fausto Haroldo.

Os relatórios produzidos pela AESI foram todos queimados, em 1982, sob a ordem do ex-reitor Hélio Guerra Vieira, após assumir e extinguir o órgão, conforme declarou em depoimento à Comissão. As cópias desses arquivos, contudo, foram resgatados no processo de coleta de documentos realizado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no Arquivo Nacional e nos arquivos do SNI, DEOPS e da própria USP.

Maria Hermínia explica que além da preocupação com documentos, os depoimentos coletados pela CV têm valor inestimável, por permitirem contar a história do ponto de vista de quem a sofreu. Nos depoimentos, os ex-alunos relatam as torturas sofridas e o clima político da época.

O relatório esclarece ainda que a perseguição na USP era realizada, principalmente, através de mecanismos do direito administrativo, visando trazer legitimidade aos processos de perseguição. Com isso, contratações e matrículas eram barradas por justificativas relacionadas, por exemplo, à lei eleitoral ou à acumulação de cargos.

Um dos casos mais emblemáticos é o da professora Ana Rosa Kucinski, desaparecida política, que foi demitida da USP sob a justificativa de abandono do cargo. Em 2014, a Congregação do Instituto de Química aprovou, por unanimidade, a anulação da decisão e inaugurou um memorial em sua homenagem.

A CV-USP esteve envolvida também na colocação do quadro do ex-reitor Helio Lourenço (1967-1969) na Galeria de Reitores da Universidade. Lourenço foi cassado na ditadura por liderar a discussão sobre a reforma universitária.

“O lado da USP que tinha uma preocupação social foi perseguido e novos professores que tinham uma posição política contrária ao sistema não podiam entrar dentro da universidade”, explica Janice.

Alunos da Escola de Comunicação e Artes da USP (ECA-USP) fichados pelo Dops. Imagem: Álbuns do Dops/Comissão da Verdade da USP

Críticas à CV-USP

Desde sua criação, a Comissão recebeu críticas por parte de professores, funcionários e alunos. Antes da criação do órgão, as entidades dessas categorias vinham desenvolvendo uma proposta de CV, com debates no Fórum pela Democratização da USP. À época, um abaixo assinado reuniu quase 5 mil assinaturas e a proposta chegou a ser debatida com a Reitoria.

“Nós encampamos essa ideia na USP quando Comissões da Verdade estavam se capilarizando para diversas organizações da sociedade civil, estados, municípios, sindicatos e universidades”, explica Renan Quinalha, que representava a Associação dos Pós-Graduandos. “Nós reivindicávamos uma comissão autônoma em relação ao poder que a instituiu e composta igualmente por representantes indicados pelos setores da universidade”, completa.

Mas a Reitoria optou por instaurar a CV-USP nomeando os sete docentes para a Comissão. De acordo com Magno Carvalho, do Sintusp, as entidades estavam elegendo representantes quando foram surpreendidos pelo comunicado do reitor Grandino Rodas.

Outra crítica relaciona-se à divulgação e acompanhamento do trabalho da Comissão. “A ideia era que se produzisse um relatório em conjunto com a comunidade e não apenas entregar um relatório de milhares de páginas”, explica Renan. Isso porque, segundo ele, que também integrou a CV do Estado de São Paulo, uma Comissão da Verdade não tem só a função de esclarecimento dos fatos, mas de mobilização e sensibilização de determinada comunidade. “No fim, ficou parecendo o modelo de trabalho acadêmico”.

Tanto o Sintusp quanto Renan não entraram no mérito da qualidade do relatório, pois não tiveram tempo suficiente para analisá-lo. No entanto, ambos concordam que a Comissão não terá como esconder a forma como foi instituída. “Por mais primoroso que seja o trabalho, ele já é comprometido por um vício de origem, pela falta de transparência e de diálogo com setores da universidade”, critica Renan.

A posição de Magno de Carvalho, do Sintusp, “coincide com a posição das demais entidades, de não reconhecer os pareceres e conclusões desta comissão imposta pelo reitor”.

Procurada, a Reitoria afirmou não ter condição de se manifestar sobre a proposta alternativa, porque “essa discussão envolvendo o Fórum Aberto pela Democratização é anterior a 2013″.

As professoras Janice e Maria Hermínia relatam que as escolhas para a Comissão partiram diretamente de Rodas, que levou em consideração o envolvimento das pessoas com a questão, pois muitos foram cassados ou perseguidos na Ditadura.

Maria Hermínia salienta que a reitoria, nas gestões Rodas e Marco Antonio Zago, lhes “deu o essencial: ampla liberdade para apurar os fatos, sem qualquer interferência”. Janice reforça que a USP nunca impediu o acesso a documentos, ainda que encontrasse dificuldades devido ao orçamento, inclusive por falta de materiais básicos.

“A Comissão não teria existido, contudo, se não fosse a pressão do movimento das organizações de alunos, funcionários e professores. Mas é difícil dizer o que teria acontecido se a comissão fosse outra”, defende Maria Hermínia. “Talvez, seja agora o momento de ler o relatório, discuti-lo, criticá-lo e continuar o trabalho que fizemos”.