A vida após a pós

Trajetórias diversas mostram que concluir um doutorado não é certeza de estabilidade

por Raphael Concli

Cerca de 75% dos doutores do Brasil possuem emprego formal. Dentre as áreas do conhecimento, a com taxa menos de emprego é a de biológicas, 66,1% – Foto: Raphael Concli

A vida de pós-graduandos têm ocupado as páginas de jornais por mais razões do que as conquistas científicas: índices de depressão e ansiedade acima da população, precariedade das condições de trabalho, relações conflituosas e abusivas com orientadores, entre outros problemas, vem chamando a atenção dentro e fora do mundo acadêmico.

A pós-graduação no Brasil cresceu muito nos últimos anos. De 1996 até 2014, o número de programas de mestrado e doutorado praticamente triplicou. A emissão de títulos também cresceu: 50 mil novos mestres e 16 mil doutores em 2014, quase quatro vezes mais diplomas de mestrado e cinco vezes mais de doutorado em relação a 1996. Os dados são da pesquisa Mestres e Doutores 2015, sobre egressos da pós-graduação no Brasil, elaborado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos.

Um dilema a ser enfrentado por essa nova massa acadêmica é conseguir espaço com seus diplomas, após anos de formação na pós, como o doutor em Filosofia que dá aulas de latim, Edson Querubini.

Expectativas

Dar aulas, preparar-se para concursos, produzir artigos e continuar sua própria pesquisa. Doutor em filosofia pela USP há dois anos, Edson tenta conciliar essas atividades que nem sempre se articulam.

Seu desejo é tornar-se professor de uma universidade pública, o que demanda um regime de estudos intenso para os concursos e a busca por publicar mais artigos para melhorar o currículo. “Eu voltei a ser um estudante que tem ainda a necessidade de ser pesquisador. É uma dupla jornada.”

O medo de que haja diminuição drástica na abertura de vagas leva muitos recém doutores a prestarem concursos por todo o país. Além de preparo, o processo demanda gastos.

Aos 45 anos, Edson se vê como um ponto fora da curva por ter concluído o doutorado tarde. Casado, tem um filho de 15 anos, nascido quando ele e a esposa estavam no mestrado. Em sua trajetória teve bolsas de pesquisa, mas por pouco tempo. Precisou desenvolver outras atividades para se manter.

Ele deu aula em colégios e realizou trabalhos como a revisão crítica de uma tradução de textos de Montaigne, filósofo e ensaísta francês cuja obra sempre pesquisou. Oportunidades assim, porém, são poucas. Os anos estudo de latim, vital na filosofia para a leitura de clássicos, permitem ao doutor dar aulas particulares do idioma, sua principal fonte de renda hoje.

Edson se diz de uma geração que produzia menos e tinha mais tempo para realizar a pós. Na graduação, achava que a USP parecia disposta a resistir ao avanço da “civilização do paper”, expressão do professor de filosofia Bento Prado Júnior para criticar o produtivismo acadêmico.

Como pontua um doutorando também da filosofia, tem-se a impressão que a expansão da pós-graduação no Brasil não foi acompanhada da abertura de vagas para absorver quem busca a carreira docente. Fora das universidades, muitos pós-graduados enfrentam outra contradição: “Estuda-se para ser pesquisador, mas o que o mercado busca são professores”.

Aumento do número de doutores empregados na educação superior entre 2009 e 2014 foi de 91% – Foto: Raphael Concli

Trajeto linear

Antônio Cláudio Padilha viveu poucos desvios em sua trajetória acadêmica. Desde a graduação em Física, concluída em 2007, queria ser professor universitário. Passou por breve experiência numa empresa de consultoria mas, interessado em desafios maiores, começou o mestrado em Física na USP e seguiu com o doutorado em nanociências e materiais avançados na UFABC.

Antônio, que sempre com bolsa, acaba de concluir um pós-doutorado na Universidade de York, Reino Unido, onde era empregado como pesquisador associado da instituição. Vivendo com com esposa e filha no exterior, seu salário vinha de um órgão do governo britânico criado para financiar a pesquisa na área de Física e Engenharia.

Apesar da ascensão direta, Cláudio experimentou momentos de desânimo, mas ainda considera que ser docente trará maior realização. Com 15 anos de qualificação no ensino superior entre graduação e pós, ele pretende começar um segundo pós-doutorado no Laboratório Nacional de Nanotecnologia, em Campinas. Lamenta, porém, a falta de reconhecimento do trabalho científico – problema não só do Brasil, diz – o que se manifesta em bolsas de curta duração e defasadas, além da perda de talentos que não tem meios de se manter.

A percepção dessas dificuldades é compartilhada por Mariana Bronzon. Assim como Antônio, todos os anos de sua formação foram dedicados a uma mesma área. No caso dela, as ciências biológicas. No momento ela cursa um pós-doutorado, mas sem bolsa.  Ela aguarda a avaliação de seu projeto pela Fapesp.

Apesar do trajeto contínuo na carreira e das publicações que já realizou, a instabilidade é permanente. A espera pelo financiamento, que considera cada vez mais difícil de obter, e a preocupação com a alta concorrência nos concursos para uma carreira acadêmica produzem uma sensação de insegurança, comenta a pesquisadora.

 

Em 2009 a região Norte possuía apenas 2,3% dos doutores do país. Em 2014 o número saltou para 4,4%. É a região com a menor taxa de doutores empregados, mas onde o crescimento foi maior. Metade dos doutores empregados está no Sudeste. – Foto: Raphael Concli

Curiosidade científica

Foi sem muita certeza que Priscila começou o curso de Odontologia no campus de Piracicaba da Unicamp. Entretanto, no segundo ano começou o atendimento nas clínicas da universidade e se apaixonou pelo curso. No ano seguinte, quando começou a atender crianças, teve convicção de que essa seria sua escolha futura. Na pós-graduação, viu a chance de se aprimorar na odontopediatria.

Apesar das dificuldades para realizar parte da pós sem bolsa, Priscila não se arrepende da escolha. Contou com a ajuda dos pais e familiares e hoje, com a bolsa de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), conseguiu uma melhor estabilidade financeira.

Mesmo assim, as questões sobre como seguirá a carreira são constantes. Nada pode ser descartado. Considera um pós-doutorado, mas sabe que está chegando a hora de começar a prestar concursos para universidades. Apesar do enxugamento de vagas, considera a vida acadêmica a opção mais estável.

De fato, pesquisa e docência são as principais ocupações de doutores no Brasil. De cada 5 doutores no país, 1 está no campo de atividades profissionais técnicas e científicas fora de universidades, enquanto outros 2 atuam na área da educação, a imensa maioria no ensino superior. Os dados são da pesquisa Mestres e Doutores 2015 e levam em conta a Classificação Nacional de Atividades Econômicas, sistema de padronização utilizado pelo governo para as diferentes área de trabalho.

Alguns dos colegas de turma de Priscila que escolheram trabalhar em consultórios particulares e grandes redes de clínicas queixam-se quando encontram salários desanimadores. É comum que na odontologia os profissionais trabalhem sem carteira assinada, diz. Ter clínica própria, por outro lado, pode ser arriscado. Na graduação os estudantes não são preparados para a gestão financeira desse tipo de negócio, conta.

Da formação como pesquisadora, Priscila destaca que conseguiu ganhar critérios baseados em evidências científicas, que pautam tanto seus artigos como o atendimento clínico: “Muitas vezes alguns profissionais que optam exclusivamente pela carreira clínica acabam distanciando da academia e ficando desatualizados ou com dificuldades de selecionar fontes confiáveis para buscar informações”.

Doutora é quem tem…

Não demorou para que Cecília Fonseca descobrisse uma área de pesquisa a qual se dedicar. Graduada em biologia na USP, a bioquímica a atraiu, em especial a pesquisa com células e a transformação maligna que sofrem no surgimento de um câncer. A iniciação científica seria o primeiro passo de um trabalho que se desenvolve até seu doutorado, no qual entrou direto, sem passar pelo mestrado.

A opção pela pós-graduação, que realizou com bolsa da Fapesp, parecia a melhor para seu desenvolvimento profissional e realização pessoal. Houve quebra de expectativa com a vida acadêmica, contudo. Cecília vê muita gente qualificada terminando o pós-doutorado e não parece haver espaço para todos. As bolsas de pesquisa de muitos de seus colegas são negadas e, mesmo para os que conseguem, a situação é instável: “não dá pra fazer planejamento de vida”.

Certa de que queria outro caminho, Cecília começou a procurar um trabalho. Passou a dedicar parte de todos os dias na busca de vagas, especialmente para empresas de pesquisa clínica. No currículo, apresentava o doutorado como experiência educacional e profissional. Tomava as atividades desenvolvidas no laboratório da universidade como trabalho, não só estudo. O mercado, porém, teria dificuldade em reconhecer o mesmo.

Cecília candidatou-se a inúmeros cargos. Em nove meses foi chamada para duas entrevistas. Nos dois locais, conhecia pessoas que a indicaram formalmente. Enfim, a vaga surgiu, mas a dificuldade em obtê-la fez a doutoranda se sentir desvalorizada.

Apesar das decepções, Cecília considera que a pesquisa a tornou mais eficiente no trabalho, no estudo e no uso de seu tempo. Sobretudo, foi um percurso que lhe fez descobrir para onde quer ir. “Eu poderia sossegar o facho e continuar nesse emprego. Mas eu decidi tentar um caminho diferente, que é a medicina”.

Cecília prestará o vestibular para o qual, anos atrás, achava-se incapaz. Se passar, será a única doutora da turma de graduação.