Conheça o projeto de extensão universitária fundado pelo economista Paul Singer

“Nós fizemos a escolha da economia solidária, e não do empreendedorismo”, conta Sylvia Leser de Mello, que esteve desde o início do projeto ao lado do professor

Equipe atual da ITCP (Foto: Mayara Paixão)

Por Mayara Paixão

“Sylvia, vamos criar um partido?”. A frase era brincadeira frequente nos cafés que a filósofa Sylvia Leser de Mello tomava com Paul Singer em Brasília, na época em que o economista esteve à frente da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senae), de 2003 a 2016. Desde o impeachment de Dilma Rousseff, a pasta foi extinta.

Os intelectuais se conheciam de longa data. Foi a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da USP, fundada em 1998, que estreitou os laços de respeito e amizade que perdurariam até o fim da vida terrena de Singer, falecido em 16 de abril, aos 86 anos.

Socialista democrático nato, o economista podia ter se dedicado apenas à política institucional — não à toa, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Ao contrário, entendeu que a transformação da sociedade se dava na modificação das relações.

Professor da Faculdade de Administração e Economia (FEA), um dos criadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e Secretário de Planejamento do munícipio de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989 a 1993), o austríaco, que encontrou no Brasil as terras para fazer valer a luta pelo socialismo, fundou um dos maiores projetos de extensão da Universidade de São Paulo.

O JC conversou com a Professora Emérita Sylvia Leser de Mello, docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, para conhecer um pouco mais dessa história que adentra a Travessa 4 da Avenida Prof. Lúcio Martins Rodrigues na Cidade Universitária.

Confira na íntegra:

JC — Como foi a criação da incubadora na USP?

Sylvia — Foi em 1998. Recebi um convite, junto com outros professores, para ir em uma reunião na Cecae, a Coordenadoria Executiva de Cooperação Universitária e de Atividades Especiais, que foi extinta. O convite e a reunião partiram da ideia que o Singer estava tocando com um grupo de estudantes na Filosofia. O vão da FFLCH foi um ponto de encontro de estudantes das mais variadas áreas que queriam entender essa coisa da autogestão, da economia solidária.

E fui a essa reunião. Estava quase me aposentando — me aposentei em 2005 —, então foi um momento especial, porque era uma coisa muito nova. A ideia era criar um programa de cooperativas populares, de economia solidária. Propor aos trabalhadores um tipo de organização diferente do tipo da organização comum do trabalho, uma relação horizontal, onde não houvesse a chefia, mas que todos fossem membros com as mesmas responsabilidades, os mesmos direitos. Aquilo progrediu. Muitos saíram, muitos não se interessaram, mas eu fiquei lá, firme.

Depois, houve um momento de definição. Era a época do Fernando Henrique Cardoso, e havia toda uma proposta de criação, no governo, de projetos de empreendedorismo. Naquele momento, juntos, entre professores e alunos, nós fizemos a escolha da economia solidária, e não do empreendedorismo.

Surgiu a possibilidade de se criar uma rede de incubadoras. Já haviam algumas no Brasil. A primeira foi no Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Eram já seis ou oito incubadoras. Nós criamos, então, o primeiro grupo de incubadoras universitárias e nos associamos à ideia da economia solidária, que vinha do Singer. Essa rede foi crescendo, muito por influência dele, também.

O que é a economia solidária?

É basicamente aquilo que se propõe: uma outra economia, na qual não há um patrão e não há um empregado. Uma economia feita coletivamente e acompanhada democraticamente pelo conjunto dos trabalhadores envolvidos.

A decisão e a organização do trabalho estão nas mãos, na cabeça, na inteligência dos trabalhadores. Não tem um patrão, mas um coletivo de pessoas que vivem de um trabalho que é essencial para eles, mas sem subordinação, sujeição. O controle é feito coletivamente, nas assembleias e através da discussão dos problemas. Pode-se dizer e eu sei disso: não é fácil.

Diria que a economia solidária é muito fruto da palavra. Sem a palavra, sem o trato entre os humanos, não se terá nunca a economia solidária; terá sempre uma economia dirigida para um objetivo que é o de obter dinheiro.

É um socialismo do trabalho. Igualdade, liberdade de dizer que não concorda ou que concorda, e democracia: esses são os princípios da economia solidária, do cooperativismo.

Como foram as experiências da incubadora?

Foi um grande desafio. Para poder propor a ideia das cooperativas populares, tem que ter grupos de trabalhadores interessados. Isso não era fácil. Na USP, somos uma ilha no meio de um oceano e, sempre que possível, a gente se fecha mais.

Existia um pessoal ligado à igreja que conhecia um padre da Paróquia São Patrício, no Rio Pequeno. Ele chamou as pessoas, marcou uma reunião e foi muita gente. Foi ali que nós começamos.

A segunda experiência foi na favela São Remo. Tinha mulheres, homens, velhos, jovens, tinha de tudo ali. O que eles precisavam efetivamente era um trabalho que pudesse ajudar na sobrevivência, porque eram muito, muito pobres.

A gente era uma coisa esquisita lá dentro. E transformar esse encontro esquisito entre alunos da USP e professores e o pessoal da favela São Remo não foi fácil. Foi sendo uma experiência em que houve uma troca muito grande porque nós aprendemos o que eles sabiam, como podiam fazer e o que queriam fazer e, também, como se dirigir, como falar com eles, não atropelá-los. A igualdade é uma coisa real na autogestão e a segunda coisa é a liberdade: que todos possam se manifestar, falar ao mesmo tempo que os outros, ouvir. Foi uma experiência iluminadora para nós.

Quando decidiram o que queriam fazer, que era uma espécie de cozinha para oferecer quentinhas para trabalhadores, tiveram que ver quanto custava, onde poderiam fazer, quanto eles necessitariam para dar corpo à ideia. Tudo para chegar à conclusão de que não tinham nem mesmo os mil reais iniciais para poder montar essa cozinha e começar a trabalhar.

Foram longos meses de intenso trabalho com o pessoal da São Remo. E era muito bom. O que desmoraliza a gente é não ter condições de, por exemplo, oferecer esse dinheiro que eles precisavam. Essa é uma experiência muito comum: um grupo se organiza, decide o que sabe fazer, o que quer fazer e tudo que precisa aprender. Quando chega na hora de poder por em prática, não têm condições econômicas. O trabalhador depende de alguma coisa que não é só o trabalho dele.

A incubadora, depois, se espraiou pela cidade. Fomos trabalhar fora de São Paulo, com grupos que surgiram na região de Registro, os quilombolas, no Vale do Ribeira.

A Professora Emérita e filósofa Sylvia Leser de Mello (Foto: Arquivo Pessoal)

Como definir a relação da incubadora com a extensão universitária?

Nunca a extensão foi dissociada da formação e da pesquisa no caso da incubadora.

Imagine alguém que fez a Poli e que só pensou o trabalho a partir das suas aulas teóricas e, de repente, se vê envolvido em um processo no qual está, de fato, participando de tudo que está acontecendo.

Eu disse isso no dia do enterro do Singer, estava muito emocionada: a USP não pode perder uma experiência dessa natureza. Foi uma experiência única, já que ela diz que tem o tripé da extensão, formação e pesquisa, a incubadora é tudo isso.

Quando a gente ia para os encontros nacionais das incubadoras, tínhamos gente de todas as áreas que você pode imaginar. A gente conseguia discutir e conversar porque estava trabalhando sob um princípio democrático de igualdade.

Por isso que surgiu o Paulo Freire ali. A ideia dele é exatamente essa: um conhecimento que vem da experiência dos trabalhadores, da sua prática e, portanto, é um trabalho que une essa sabedoria.

Foi a melhor coisa que fiz na minha vida. Achei que já tinha visto tudo, estudado, lido e, de repente, tenho que discutir com a mulherada da São Remo, explicar o que é a igualdade, a liberdade, a democracia. Exige de você um recomeço. Você tem que recomeçar a pensar o que é o trabalho.

Mulheres são protagonistas do processo de autogestão?

Muito. Na primeira reunião de economia solidária que fizeram em Brasília, meu queixo caia quando ouvia as mulheres se posicionando. Eram mulheres que trabalhavam duro, vinham da roça, tinham uma experiência de vida tremenda em relação à sobrevivência.

As mulheres são absolutamente surpreendentes nesse processo. Elas foram aprendendo a não submissão — um aprendizado muito difícil. A maioria nasceu submissa ao pai, aos irmãos, à patroa, ao patrão e, de repente, são ouvidas, falam. Isso é uma revolução na vida delas.

Na incubadora, vimos que, muitas vezes, maridos e esposas não davam mais certo, separavam. Porque, de repente, a mulher vai para a reunião, forma uma cooperativa e, quando volta para casa, está um pouquinho diferente. E ela se dá conta dessa diferença. O número de mulheres que tinham parado no primário e voltam a estudar é extraordinário. Essas mulheres aprenderam o que não foram ensinadas, e aprenderam como coletivo, com o exercício da ação. Isso perturba uma relação que é, em geral, baseada na submissão.

Havia uma senhora em um projeto de Campo Limpo que se separou do marido e foi estudar. Ela não olhava para a gente, falava sempre com a mão na boca, a cabeça baixa, e, de repente, fazia uma fala para as outras mulheres lembrando o que tinha aprendido: que podia ganhar o dinheiro dela sem explorar ninguém e também que não era um lixo, que não podia ser maltratada pelo marido. É um salto na direção do ser humano.

Quais as principais lembranças do legado de Singer?

Singer ficou um amigo. O primeiro encontro foi em 1998 e, a partir daí, fomos trabalhando juntos. Ele tinha uma característica evidentemente democrática e generosa. Uma pessoa com quem a gente se relacionava muito facilmente. Me dei muito bem com ele.

Sou uma pessoa de livros, gosto de literatura. Singer gostava de política, ele era um socialista. Eu também, mas não essa percepção política do mundo. Lá em Brasília, o pessoal falava de política pesada, e o Singer sempre com muita honestidade e sinceridade. Ele batia na porta dos ministérios e era aceito. Os ministros tinham o maior respeito por ele. Imagino que agora não teriam, porque mudou tudo. Singer merecia esse respeito.

Gostava muito de conversar com ele lá em Brasília. Ele me chamava, a gente tomava um cafezinho e ele dizia o que pensava da política. Ele dizia: ‘Sylvia, vamos criar um partido?’.

Era um homem autenticamente democrático e socialista. Tinha a absoluta convicção de que o mundo não pode ser dividido entre incluídos e excluídos. Generoso, disposto a conversar, a discutir. O mais humilde dos catadores de papel chegava e ele encontrava uma maneira de se comunicar com o catador de papel.

A incubadora sem o Singer seria meio sem alma. Acho que tem que homenageá-lo em tudo que ele fez, mas principalmente nessa ampla humanização, ampla igualdade e respeito que ele tinha pelas pessoas.

Sinto muita falta dele.

 

Incubadora de cooperativas populares completa 20 anos

No teto de uma das salas, faltam pedaços. Na parede da cozinha, uma rachadura divide a parede principal do teto ao chão. As cadeiras são antigas, estofado rasgado, o que não impede longas prosas sobre os rumos da ITCP e da economia solidária. Esse é o espaço que abriga a incubadora dentro da USP.

O JC visitou a ITCP justamente no dia em que uma reunião de balanço e sistematização das duas décadas de existência do projeto acontecia com seus 10 membros atuais — todos alunos bolsistas — e convidados, que participaram da incubadora no passado.

Paul Singer na Incubadora de Cooperativas Populares (Foto: Arquivo ITCP)

Na roda de conversa que mesclava uma revisitação à história do projeto aos desafios futuros, muitas das inquietações poderiam se confundir com a entrevista de Sylvia Leser de Mello e a narrativa dos primeiros passos da ITCP.

“Se formos comparar, por exemplo, com a incubadora da Ufscar, que tem uma dotação orçamentária, uma visibilidade maior dentro da Universidade, a gente aqui é o primo paupérrimo”, brinca o estudante de ciências sociais Diego dos Santos Veigas Silva, membro do Núcleo de Apoio às Atividades de Cultura e Extensão em Economia Solidária (Nesol).

“Para a gente acontecer, precisa ficar captando recurso o tempo inteiro, o que acaba fazendo uma precariedade com o nosso trabalho. Existe um processo de trabalho com as comunidades que não dá para falar ‘serão apenas 12 meses, e depois deles acabou, já estará tudo acontecendo’. Dependendo do recurso que você tem, esse trabalho se precariza mais ou menos, quem sofre é sempre a comunidade”, explica.

Atualmente, a ITCP está ligada à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária  (PRCEU). A Universidade fornece água, luz, café, açúcar e insumos de limpeza. Enquanto isso, os alunos, que compõem a incubadora e recebem bolsas de 400 reais em média, participam de quatro diferentes projetos autogestionados, ligados à gênero e raça, saúde mental, agroecologia e o das ‘bambuzeiras’, com um grupo de mulheres.

Desafios

Em 2016, o governo de Michel Temer (MDB) rebaixou a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senae) a subsecretaria. Para 2018, o orçamento previsto é de 15 milhões de reais. Em 2014, o valor chegou a 129,9 milhões, cerca de nove vezes maior. A situação política, segundo os membros da ITCP, configura um dos agravantes da situação das incubadoras e da economia solidária.

“A própria Rede de Incubadoras está sem se encontrar faz um tempo, porque as incubadoras estão todas com dificuldades financeiras”, conta a estudante de Design Mayara Fujitane.

No último ano, não foi aberto edital do Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares (Proninc), coordenado pela Senae. O programa é um dos principais subsidiários das incubadoras brasileiras.

A essa situação, Mayara acrescenta as consequências que o desemprego tem acarretado nas incubadoras pelo país. A taxa nacional de desemprego subiu no trimestre encerrado em fevereiro para 12,6%, ante 12% em novembro, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Ao mesmo tempo, cresce a informalidade no mercado de trabalho.

“O desemprego aumentou muito e a própria estrutura das cooperativas tem ficado precarizada. O trabalho como um todo — tanto o dos formadores, como o dos cooperados — se precarizou. Está todo mundo dando um jeito de se sustentar, indo atrás do seu ganha pão”, diz.

Apesar das adversidades, o projeto continua vivo graças ao que Diego caracteriza como “a militância de professores e estudantes”. O recado para a comunidade universitária, como diz Mayara, não é tão complicado: “Acreditamos na extensão popular.”