Coronel da PM: “prender muito não é sinal de qualidade, mas de ineficiência”

O Tenente-Coronel aposentado Adilson Paes de Souza explica que a baixa qualidade de serviços públicos e a falta de infraestrutura policial atrapalham o combate ao crime.

Caio Nascimento

Foto: arquivo pessoal

A Polícia falha ao prevenir o crime. É o que afirma o Oficial aposentado da PM e mestre em Direitos Humanos pela USP, Adilson Paes de Souza. Com 36 anos dentro da corporação, ele analisa que o alto número de prisões em flagrante – 33 mil até agora neste ano – não significa que a Polícia cumpre com as políticas contra a criminalidade. “As equipes da Civil e da Militar estão defasadas e faltam muitos efetivos materiais. Não há policial suficiente na rua e para investigação”, expõe.

Adilson acredita que a educação dos PMs não é fornecida à luz dos direitos humanos. “A formação de policiais no tema é formal, ascética e sem vínculo com a sociedade”, critica.

Ele é autor da dissertação de mestrado A educação em direitos humanos na Polícia Militar. Para a pesquisa, entrevistou agentes presos por cometer execuções sumárias e, dentre os detentos, um disse: “nós, ao adentrarmos na PM, nos consideramos entrando no território inimigo, e lá é matar ou morrer”. O trabalho deu origem ao livro Guardião da Cidade, em que o coronel apresenta as conversas que teve com os policiais para entender o que os leva a cometer assassinatos e outros desvios de conduta.

O especialista aponta ainda que não há diferença entre a visão de Bolsonaro e as ações do PT na área de segurança pública.

Bolsonaro é membro da reserva militar do exército e tem um discurso punitivista. Na área de segurança pública, qual a expectativa do senhor caso ele venha a ser presidente do Brasil?

Quero deixar claro que não o apoio e não levanto bandeira política para ninguém, mas o discurso do Bolsonaro é o mesmo que o de partidos dito de esquerda que estiveram no poder. O Brasil sempre teve uma gestão da segurança pública conservadora, e outros políticos fazem ou fizeram o mesmo que o Bolsonaro, só que com formas diferentes de falar. O governo da Dilma Rousseff (PT) é tido como de esquerda, mas sancionou a lei antiterrorismo na Copa do Mundo às sombras da sociedade. Esta norma é extremamente subjetiva, antidemocrática e pode enquadrar qualquer pessoa em um ato terrorista.

Tudo isso foi para atender às exigências da FIFA ou das mídias internacionais, então eu não vejo diferença alguma entre as atitudes do governo do PT e o discurso do Bolsonaro quando o assunto é segurança pública. A distinção dele para os outros políticos é que ele tem um jeito de falar que causa barulho e reverbera.

“Em termos de segurança pública, todos falam a mesma língua, embora os discursos de campanha eleitoral sejam completamente diferentes.”

Mas ele defende a pena de morte, apoia figuras conservadoras como o Brilhante Ustra, fala bem da Ditadura Militar…

Ele fala esses absurdos e reitero, não acredito nisso. No entanto, já ouvi discursos oficiais de governantes que são contra a pena de morte, mas que nada fizeram quando tiveram a oportunidade de mudar algo na relação da polícia com a sociedade. Calaram-se ou estimularam a ação violenta da instituição policial.

Um exemplo é a Lei das Organizações Criminosas, aprovada pelo governo petista em 2013, que é usada para enquadrar manifestantes, não só bandidos. Em junho do mesmo ano, os protestos que eclodiram foram tratados pelo Governo Federal como casos de polícia. Dilma Rousseff chamou os manifestantes de mimados que estavam prejudicando o funcionamento das cidades. Em nenhum momento ela parou para discutir as pautas com a população que estava nas ruas. Fora isso, a União disponibilizou elementos da Força Nacional de Segurança para atuar nos estados. Esse discurso, veiculado pelo governo petista, foi conservador e punitivista. Outra coisa: o que foi feito para abrir os arquivos da ditadura militar durante esse governo? Nada. O que foi feito para criar mecanismos de redução da letalidade policial? Nada.

Em termos de segurança pública, todos falam a mesma língua, embora os discursos de campanha eleitoral sejam completamente diferentes.

Esclareço que não sou anti-petista e não tenho nada contra a Senhora Dilma Rousseff. Estou apenas analisando os fatos do governo.

Está previsto na Constituição Federal que a PM é uma força auxiliar do Exército. A Polícia Militar se aproxima das práticas das forças armadas?

Acho errado a Polícia Militar, diante dessa colocação constitucional, atuar como um exército nas suas relações diárias com a comunidade. É como se a atividade de policiamento ostensivo fosse de guerra num território ocupado pelo inimigo, onde a morte do adversáDrio prevalece. Durante o mestrado, fiz pesquisas com policiais militares presos por cometer execuções sumárias, e um deles deixou muito clara essa lógica: “nós, ao adentrarmos na PM, nos consideramos entrando no território inimigo, e lá é matar ou morrer”.

Essa mentalidade gera danos à sociedade e aos policiais militares envolvidos nessas questões. Tenho um levantamento, feito pelo SBT, com dados da Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo, que demonstra que a cada 15 dias um agente comete suicídio. Ou seja, a violência gerada para fora da PM está voltando para o próprio policial militar, que não suporta essas tensões.

“É um erro a polícia dizer que é eficiente por prender demais em flagrante, porque o crime já aconteceu. Não tem volta. A polícia é eficiente quando ela previne o delito, e a produtividade deveria ser medida assim.”

O que o senhor entende por desmilitarização da PM?

A Polícia Militar foi reformada aos moldes da Ditadura Militar com o Decreto-Lei 667 de 1969. A norma tem o AI-5 como fundamento e vigora até hoje na Constituição. Portanto, o AI-5 ainda está muito presente na nossa sociedade. Isso se deu sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional, usada para enquadrar o Estado brasileiro no contexto de Guerra Fria contra a dita “ameaça comunista”. Esse contexto embasou a eclosão do golpe e a manutenção do regime.

Então, o que eu entendo por desmilitarização da polícia é banir da vida da nação essa doutrina, para que nós tenhamos uma nova polícia, efetivamente criada à luz do Estado Democrático de Direito, que deveria reger o Brasil, mas ainda não vige com transparência e participação dos cidadãos. Não há uma responsabilidade social no gerenciamento da polícia, porque não é permitido à sociedade participar.

De que modo os valores, crenças e percepções pessoais do policial interferem na ação da Polícia Militar?

Creio que afetam a partir do momento em que o agente encontra eco no grupo da PM ao qual pertence, principalmente, se a sua educação na corporação não for voltada para entender os pontos críticos dos problemas sociais. A formação de policiais na Academia é formal, ascética, sem vínculo com a sociedade. Assim, a corporação acaba permitindo que os valores sociais se sobreponham e se construa uma subcultura, que acaba se tornando mais forte que a oficial. Portanto, há aí o grande dilema da PM: como proporcionar uma educação policial aos jovens que chegam na corporação carregados de preconceitos? Eles precisam entender que não são Super-Homens que podem matar em nome da segurança pública. Eles devem entender que não representam somente si mesmos, mas o Estado.

Como a homofobia, o racismo e os demais preconceitos ecoam dentro da polícia?

As manifestações que aconteceram na Cidade Universitária da USP, durante o Conselho Universitário no começo do ano passado, é um exemplo de que há um campo fértil para a intolerância ecoar na PM. Os manifestantes foram duramente reprimidos. Teve uma menina que foi covardemente agredida pelos agentes, e um deles era mulher. Ou seja, a policial militar não reconheceu a cidadã do próprio gênero na hora de machucá-la, mesmo com toda a violência que as mulheres sofrem na sociedade. Essa agente foi assimilada pelo grupo militar dentro de uma subcultura de violência, e nada justifica um PM tratar um manifestante daquela maneira. Então, existe sim uma carga de preconceito dentro da corporação. O desafio da educação militar é não permitir que essa subcultura floresça.

“O policial, muitas vezes, trabalha na hora de folga para complementar a renda. Então, temos um policial cansado, estressado, com preocupações em excesso. Isso pode contribuir para o mau exercício de sua função e a resolução errônea de ocorrências.”

De acordo com o índice de produtividade policial da Secretaria de Segurança Pública de SP (SSP/SP), o maior número de prisões feitas pela PM é em flagrante. Só neste ano já foram 33 mil pessoas. Por que esse número é tão alto?

A Secretaria de Segurança Pública de SP deveria fazer uma análise qualitativa dessas prisões em flagrante. Se você olhar os dados do Departamento Penitenciário Nacional, tem muita gente presa por tráfico de drogas. Só que, analisando a maioria dessas prisões, são pessoas que estavam portando entorpecentes, mas o policial interpreta como tráfico. Então, essas detenções são uma forma punitiva do Estado se relacionar com as pessoas. Outro ponto: é um erro a polícia dizer que é eficiente por prender demais em flagrante, porque o crime já aconteceu, não tem volta. A polícia é eficiente quando ela previne o delito, e a produtividade deveria ser medida assim.

Em atividades de prevenção, a PM falha e os delitos estão em números elevadíssimos. Prender muito não é sinal de qualidade, mas de ineficiência, porque o papel da polícia é, antes de tudo, evitar que o crime aconteça.

E por que a prevenção não é eficiente?

Existem muitas falhas. As equipes da polícia civil e militar estão defasadas e faltam muitos efetivos materiais. Não há policial suficiente na rua e para investigação. Além disso, a prevenção não depende só da polícia, ela atua também com os demais órgãos públicos. Então, iluminação pública, limpeza urbana, escolas e saúde de qualidade fazem com que as pessoas se sintam amparadas. Essas são causas primárias que favorecem a prevenção do delito, mas não são suficientes em São Paulo.

A PM de São Paulo não tem aumento salarial há quatro anos. Em março, o Alckmin enviou à Assembléia Legislativa uma proposta de reajuste de 4%, que foi criticada. Como essa questão salarial afeta o trabalho da corporação?

Os membros da Polícia deveriam ter melhores condições de trabalho e salários mais dignos. Isso não existe e contribui para a piora do quadro de segurança pública, porque o agente, muitas vezes, trabalha na hora de folga para complementar a renda. Então, temos um policial cansado, estressado, com preocupações em excesso. Isso pode contribuir para o mau exercício de sua função e a resolução errônea de ocorrências.

Comando de Policiamento da Capital (CPC). Foto: Caio Nascimento
Comando de Policiamento da Capital (CPC). Foto: Caio Nascimento

Por serem tidos como índices de produtividade, os números de ocorrências policiais criam uma cultura de prisões em flagrante?

Existem parâmetros equivocados para mensurar a produtividade policial. Pra mim, se a polícia prende muito, é porque peca na prevenção. Quando você valoriza o policial por prender, você não está errado, mas não está totalmente certo. Ao valorizar aquele que prende, se estimulam as equipes a saírem para caçar ocorrências e não para prevenir delitos. A atuação da polícia de um batalhão de determinada área deveria ser exaltada pela prevenção, redução dos indicadores criminais, e não pela mensuração das prisões.

A ONG Humans Right Watch analisou no ano passado que o Código Penal Militar do Brasil impõe amplas limitações à liberdade de expressão dos policiais. De qual forma isso prejudica a PM?

Esse fato cria o risco de um policial questionar uma ordem com o devido respeito ao seu superior e ser acusado de crime militar ou de desacato. Se isso acontecer,  há a possibilidade dele ser preso ou processado. Esse cenário obstrui a discussão sobre novos modelos de Polícia e pode prejudicar a participação do subordinado. É um erro a PM e as Forças Armadas estarem vinculadas à mesma Legislação Penal Militar. As duas estão em contextos diferentes.