Extensão é quando a universidade enxerga além do próprio umbigo

Iniciativas de alunos cumprem um dos deveres fundamentais da universidade pública – ou o que ela deveria cumprir

Igor Soares

Aula promovida pelo projeto Matemática em Movimento em escola pública de São Paulo – Foto: Divulgação

De acordo com a Constituição Federal, as universidades brasileiras são formadas sobre o tripé do ensino, pesquisa e extensão. O primeiro diz respeito à construção do conhecimento; o segundo significa a produção de novos saberes e o terceiro pressupõe intervenção na sociedade, como projetos culturais e educativos.

Preocupados em atender o terceiro quesito, a extensão, alunos dos mais diversos cursos – e não exatamente a USP – dedicam horas e dias de sua rotina pessoal atuando em entidades que levam o conhecimento produzido na universidade para a sociedade.

Um exemplo é projeto Matemática em Movimento, criado e tocado pelos alunos da Escola Politécnica. O curso oferece aulas de matemática e atividades de cultura e desenvolvimento para alunos do 9º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio de escolas públicas. “Nossa missão é orientá-los a investir na educação como meio de desenvolvimento pessoal e profissional”, diz Laís L. Couy, voluntária da entidade.

No ano em que o Matemática em Movimento começou, em 2012, dados da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo mostravam que apenas 9,1% dos alunos do 9º ano das escolas públicas detinham conhecimento adequado em matemática – e somente 1% apresentava entendimento avançado da disciplina.

O projeto de matemática é composto por mais de 100 pessoas, entre alunos e ex-alunos da USP. “Nascemos como um projeto de sete voluntários e dez alunos e, em seis anos, alcançamos a marca de mais de 180 alunos matriculados e 110 voluntários”, conta Laís.

Para facilitar o ingresso e permanência dos alunos, as atividades acontecem aos sábados de manhã, em duas escolas da cidade de São Paulo: Etec Zona Sul e a EMEF Desembargador Amorim Lima – esta escola, vizinha da USP, na zona Oeste, tornou-se referência pela inovação dos métodos pedagógicos, que dão autonomia aos alunos no processo de aprendizagem.

Para manter-se financeiramente, o Matemática em Movimento conta, principalmente, com doações de pessoa do círculo social dos voluntários, além de ajudas pontuais de empresas parceiras para doações de lanches, materiais e prestação de outros serviços. O projeto também recebe suporte de outras entidades da Escola Politécnica, como o Grêmio Politécnico, o programa Poli Cidadã e o Centro Acadêmico de Engenharia de Produção (CAEP).

“Com as aulas, atividades de cultura, desenvolvimento e o contato com voluntários semanalmente, os alunos passam a acreditar que buscar os sonhos, por mais distante que pareça em um primeiro momento, depende muito deles e que é possível terem oportunidades”, diz Laís.

Direito para todos

Antes mesmo de os modernistas paulistas agitarem a cultura brasileira com a Semana de Arte Moderna de 1922, que incorporou elementos populares nas artes, os alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco atendiam quem precisava de auxílio jurídico.

Isso porque em 1919 foi criado o Departamento Jurídico XI de Agosto, órgão prestador de assistência jurídica gratuita à população da cidade de São Paulo, promovendo o acesso à justiça.

O projeto é composto por alunos de todos os anos da graduação em Direito. Eles realizam serviços que vão desde o primeiro atendimento ao público até a redação de peças processuais, além do acompanhamento em audiências.

O Departamento Jurídico XI de Agosto atua em várias áreas, atendendo casos que dizem respeito a questões familiares, penais e trabalhistas, entre outras. Beatriz Giadans, integrante da entidade, destaca que a demanda de trabalhadores vem registrando grande aumento  – esse tipo de atendimento não é realizado pela Defensoria Pública do Estado.

Prestes a completar 100 anos, o projeto oferece ao aluno o aprendizado fora da sala de aula. “Proporciona não apenas um maior contato com a prática jurídica, mas também uma oportunidade de desenvolver uma visão mais humanizada do Direito, considerando o contato com os assistidos e suas mais diversas vivências”, diz Giadans.

Assim como o Matemática em Movimento, o Departamento Jurídico XI de Agosto tem seu sustento garantido através de contribuições de parceiros institucionais e repasses do Centro Acadêmico. Além disso, mantém projeto de captação junto a diversos escritórios de advocacia, que realizam doações mensais.

Diálogo com a comunidade

Quilômetros distante do largo São Francisco, alunos da USP Leste querem estreitar relações com a população do entorno com o EACH Social. Por meio de ações sociais, eles ajudam a transformar a comunidade local. Não pretendem apenas assistencialismo, mas fortalecimento da comunidade.

O projeto surgiu inspirado na atuação do FEA Social, iniciativa que começou em 2014. Cursando disciplina de empreendedorismo, Victor Hugo Mathias, aluno de Gestão Ambiental, chegou à conclusão de que os discentes não desempenhavam sua função social como estudantes de uma universidade pública, principalmente tendo em vista a situação do entorno do campus da USP Leste. Em 2015, o projeto ganhou vida e logo provocou o surgimento de iniciativas similares.

“Quem faz parte da EACH Social consegue expandir sua visão de mundo e passa a ter um olhar diferente sobre novas realidades e sair do senso comum”, diz João Paulo Profeta dos Reis, integrante do projeto. “Atuando nos projetos, os membros passam a ter uma grande noção de trabalho em grupo, planejamento e adquirem um conhecimento interdisciplinar considerável”, conta.

“Um aluno de Gestão Ambiental pode passar a ter noções de marketing e conhecimentos sobre a terceira idade quando trabalha num projeto com esse foco. Vamos além do que cada curso ensina em específico”. Para o aluno, o projeto acaba dando sentido à graduação de muitos participantes: “ele motiva alunos que nunca se viram em um projeto em que sua participação seja fundamental para trazer o bem à vida de outra pessoa”.

Além do quintal

De acordo com a Polícia Federal, o Brasil registrou grande aumento no número de imigrantes em 2009: 87 mil pessoas entraram no país, mais que o dobro do ano anterior.

Nesse cenário, surgiu o Educar Para o Mundo, coletivo de extensão universitária de alunos do Instituto de Relações Internacionais, atuando na área dos direitos humanos. Ele tem como foco a população imigrante da cidade de São Paulo e visa promover o diálogo com o conhecimento acadêmico e popular.

“Buscamos romper o isolamento sociedade e universidade, uma vez que conhecimento acadêmico se tornou altamente abstrato e descolado da realidade que o circunda, gerando uma bolha que afasta tanto os estudantes da realidade concreta quanto o resto da sociedade da universidade”, analisa Ariel Motta, voluntária do projeto.

A iniciativa é norteada pelos princípios pedagógicos de Paulo Freire, educador brasileiro autor da pedagogia do oprimido. Para o educador, o objetivo maior da escola é o de ensinar o aluno a “ler o mundo” para transformá-lo.

As atividades ocorrem semanalmente. Uma vez por mês são realizadas oficinas que tratam de direitos humanos em conjunto com o coletivo Si Yo Puedo, grupo de voluntários de várias nacionalidades que promove ações de acolhimento, orientação profissional e apoio na busca do trabalho formal de imigrantes. As atividades do Educar Para o Mundo acontecem desde 2012 na Praça Kantuta, no Canindé.

Jornada pela saúde

Não só pelo golpe que o ano de 1964 é, por alguns, lembrado. Naquele ano, alunos e professores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP seguiram rumo ao interior paulista com o objetivo de identificar focos de esquistossomose. Foi a partir desse primeiro passo que surgiu a Jornada Científica.

Após várias mudanças, a iniciativa se tornou um projeto de prestação de serviços voluntários de assistência farmacêutica a comunidades, na tentativa de melhorar as condições de vida dos habitantes de uma determinada região, buscando soluções locais.

“Ele visa a educação da população e dos profissionais de saúde da cidade, acerca das doenças que os acometem, permitindo criar multiplicadores de informação, que mantenham e transmitam o conhecimento, mesmo após a saída do projeto da cidade”, conta Laís Moreira, coordenadora geral da Jornada.

O projeto, que conta com financiamento de alguns setores da universidade, é realizado em ciclos de 3 a 4 anos em cidades do interior do estado. As atividades são: atendimento domiciliar com crianças e idosos, exames, orientação acerca do uso correto de medicamentos, análise físico-química e microbiológica da água, capacitação dos agentes comunitários de saúde e atividades educativas, visando trabalhar o lado psicossocial da saúde.

“A iniciativa oferece um desenvolvimento humanitário muito importante para que os alunos, como futuros profissionais de saúde, aprendam a olhar e compreender o paciente como um ser complexo com dificuldades e sentimentos”, conta Laís.

Propostas distintas, problemas comuns

Apesar de atuarem de maneiras diferentes, os projetos de extensão da USP enfrentam problemas similares. As doações financeiras obtidas das mais diversas fontes não são suficientes para manter as entidades em pleno funcionamento.

“Tendo em vista que a Jornada Científica realiza uma gama muito grande de atividades, são necessários recursos para financiar e, atualmente, vem sendo difícil obter esse amparo de empresas e instituições”, desabafa a coordenadora.

“As doações, em sua grande maioria, não são recorrentes”, conta Laís, do Matemática em Movimento. Internamente, os problemas são outros: “enfrentamos o desafio da evasão escolar, principalmente no ensino Médio, e estamos com foco constante para melhorar nossas taxas de retenção e convocação de novos alunos”.

A atração de novos membros também é um desafio, não só para o Matemática em Movimento, mas também para o Rosa dos Ventos e, especialmente, para o Departamento Jurídico: “O trabalho demanda muito tempo e dedicação, por isso, encontramos dificuldade de permanência financeira das estudantes”, revela Beatriz Giadans.

“Com as crescentes mudanças do padrão socioeconômico das universidades públicas, existe uma demanda maior de bolsas destinadas à permanência. Em meio a diversas oportunidades em escritórios e órgãos públicos, acaba sendo muito difícil manter uma estagiária que possa se dedicar ao Departamento Jurídico sem receber qualquer remuneração.”

O projeto conta com cinco bolsas do Programa Unificado de Bolsas da USP, no valor de 400 reais mensais, oferecidas para alguns membros. Não há apoio exterior à universidade.

A EACH Social enfrenta problemas relacionados ao acesso ao campus da USP Leste por não-alunos. “Torna-se inviável trazer grandes quantidades de pessoas da comunidade para ações dentro do campus”, conta João Paulo.  

O aluno destaca que há estruturas úteis à comunidade, como o ginásio, quadras esportivas e anfiteatros. “O acesso a USP ainda não é democrático na Zona Leste”.