Maio de 68: das ruas francesas à Cidade Universitária

Wojciech Kulesza (à direita) em apresentação do Teatro Novo. Foto: Arquivo Teatro Novo.

Por Lucas Almeida e Vitor Garcia

“Eles amavam os Beatles e os Rolling Stones, protestavam ao som de Caetano Veloso, Chico ou Vandré, viam Glauber e Godard, andavam com a alma incendiada de paixão (…). Era uma juventude que se acreditava política e achava que tudo devia se submeter ao político: o amor, o sexo, a cultura, o comportamento.”

É dessa forma que Zuenir Ventura define a geração que foi protagonista nas agitações de Maio de 68, que completam, neste mês, 50 anos. O movimento ficou mais conhecido pelas manifestações na França, mas não se restringiu a isso. As efervescências influenciaram e foram influenciadas por uma série de outros episódios que se espalham por diversos países nos anos anteriores e posteriores.

“O Maio de 68 francês, pelo seu conteúdo libertário, tornou-se o mais emblemático símbolo das lutas de 1968, que eclodiram em outras partes do globo tais como a dos negros e dos estudantes nos Estados Unidos; contra as opressões políticas nos regimes militares da América Latina, ou no leste europeu, com a Primavera de Praga”, explica Maria da Glória Gohn, professora da Unicamp e especialista em movimentos sociais.

No Brasil, a população estava inserida em um contexto político e social de limitação das liberdades: a ditadura militar (1964-1985). Às vésperas do AI-5, ainda que as agitações por aqui estejam mais atreladas às lutas políticas, os movimentos contra costumes arraigados e agitações culturais marcaram época. Nesse cenário, os movimentos na USP foram emblemáticos: desde as mobilizações do Movimento Estudantil até o Teatro Novo, no Crusp.

Significado

O movimento francês começou de uma maneira que poderia se confundir com reivindicações estudantis de hoje: a melhoria das condições do campus universitário. Juntava-se a isso uma demanda por dormitórios mistos.

A partir daí, um grupo de estudantes da Universidade Paris X, de Nanterre, passou a se movimentar. A direção respondeu de maneira autoritária e a faculdades de Letras foi fechada. A luta se transfere para a Sorbonne, de Paris, onde também se expandem as reivindicações: da briga pela reabertura da faculdade de Letras e contra a rigidez da universidade, os estudantes passam a contestar o governo de Charles De Gaulle.

Aos poucos, as agitações se espalham. “O movimento cresceu e rapidamente a revolta cultural transformou-se em luta social e política. Saiu dos muros da universidade, foi para as ruas, penetrou nos problemas da sociedade francesa e difundiu-se pelo mundo todo, capturando e incorporando em suas demandas os diferentes contextos das conjunturas políticas onde se inseria”, explica Gohn em seu livro “Sociologia dos Movimentos Sociais”.

O movimento recebe a adesão primeiramente da classe artística. O Festival de Cannes daquele mês termina sem premiação, após membros do júri renunciaram aos seus cargos e os diretores Alain Resnai e Carlos Saura retirarem seus filmes da competição. A mobilização cultural foi seguida da adesão de trabalhadores e operários com uma marcante greve geral no país.

Gohn destaca, no entanto, que “os protagonistas principais do Maio 68 francês foram os estudantes, os professores, jornalistas, poetas, escritores, cineastas e alguns técnicos do setor público”, e não os operários. “Inicialmente, os conflitos que levaram a eclosão do movimento em Nanterre não eram diretamente econômicos, não era a exploração do capital que contestavam, mas a opressão e dominação cultural”.

Frente às crescentes agitações, De Gaulle dissolve a Assembleia Nacional e convoca eleições antecipadas. Após junho, o movimento estava dissolvido. Manifestações de apoio ao General ocorrem em Paris e as eleições terminam com a vitória dos governistas. Daniel Cohn-Bendit, um dos principais líderes do movimento, é expulso do país.

Ainda assim, Gohn destaca que “os movimentos feministas, ambientalistas e pela paz tiveram um marco histórico que os projetou, no cenário político, como atores sociopolíticos relevantes”. Zuenir Ventura, em seu “1968: O Ano Que Não Terminou”, completa: “Como movimento político, 68 pode não ter sido um exemplo de eficácia; do ponto de vista do comportamento, no entanto, mesmo no Brasil, seus efeitos se fazem sentir inclusive hoje”.

Maio de 68, além das contestações políticas, passa a ser reconhecido também pela luta contra qualquer forma de opressão, seja de direita ou de esquerda, e pelo enfrentamento no campo moral e sexual. Mais do que isso, como explica Gohn, passa a ser visto como um grito de inconformismo que se disseminou entre categorias sociais oprimidas.

No Brasil, as manifestações estudantis e de outros setores contra o regime militar se misturavam com o tropicalismo, os festivais de música popular, o Cinema Novo e a “Roda Viva” de Chico Buarque.

“A maioria destes artistas continua sendo marco de resistência e inspiração para a cultura de protesto. Hoje deve-se considerar a cultura de rebeldia dos coletivos culturais, especialmente em regiões periféricas das grandes capitais, ainda que muitos tenham suas raízes na década de 1960. Caetano Veloso disse em 2008 que, “o movimento hoje, para ser parecido com 68, tem que ser muito diferente”, explica Gohn.

Turma do Teatro Novo, data desconhecida. Foto:
Arquivo Teatro Novo.

Teatro Novo:  um espetáculo no Crusp

“Só sei que eu tinha 20 anos, os cabelos compridos e curtia as músicas dos Beatles”, diz o professor da Universidade Federal da Paraíba Wojciech Andrzej Kulesza sobre o período em que cursou a graduação em Física, enquanto morava no Conjunto Residencial da USP, o Crusp.

Kulesza participou do Teatro Novo desde a sua criação, um grupo formado entre 1967 e 1968 por estudantes do Crusp. “Disposta numa linguagem não linear, a peça nos parecia perfeita para dar o nosso recado que era, afinal de contas, que o mundo precisava mudar. Daí o nome Teatro Novo, tal como Cinema Novo, Bossa Nova e também Escola Nova”, relembra o professor.

No segundo semestre de 1967, os estudantes criaram um grupo de estudos de teatro. A iniciativa possibilitou uma primeira imersão no cenário paulistano. Com a chegada de dois argentinos estudantes de Artes Cênicas ao conjunto residencial, começaram os espetáculos.

“A organização de grupos com os mais variados interesses era uma prática comum no Crusp. Retomava-se a tradição recente dos Centros de Cultura Popular (CPC) do movimento estudantil, reprimidos depois do golpe de 64”, explica Kulesza. “Começamos então em 1968, durante a noite, no Centro de Vivência do Crusp, uma oficina de formação de atores dirigida pelos hermanos e aberta à participação de todos os interessados.”

Por conta da disponibilidade, o graduando de física logo se tornou assistente de direção, além de participar das produções do grupo. Kulesza chegou a se matricular no curso de Teatro da USP, mas desistiu pouco tempo depois por considerar o seu conteúdo maçante.

“De espectadores, passamos a estudar os palcos, a iluminação, o som, a cenografia, fomos aos camarins cada vez mais convencidos de que fazíamos parte daquele meio”, relembra. “Passamos a respirar, nem que fosse por breves momentos, a atmosfera inebriante do espetáculo teatral e viver também a precariedade das condições de trabalho da maioria dos profissionais de teatro daquele tempo.”

Tinha que chocar

“A gente achava que o espetáculo, antes de tudo, tinha que chocar o público, tirá-lo da modorra que vivia para que aí então se instalasse a reflexão. Valores tradicionais de nossa sociedade que não se podiam questionar, mormente os religiosos, os morais e os estéticos, eram exibidos cruamente em cena sem nenhuma concessão”, afirma Kulesza sobre a proposta do Teatro Novo.

O professor relembra que havia um pensamento hegemônico dentro do movimento estudantil sobre a importância do teatro político defendido pelo dramaturgo Bertolt Brecht. “Nos considerávamos na vanguarda, construindo os novos tempos. Isso fez com que nos chocássemos de frente com as propostas dos dirigentes do movimento estudantil a favor de um teatro a serviço da revolução. Éramos considerados, por muitos, alienados, com todo o peso que esta palavra significava na época dentro da esquerda”, comenta.

Kulesza não lembra de ter problemas com a censura instaurada durante a ditadura deste período. “Com sua proverbial estupidez, não conseguiam compreender a sutileza dos nossos textos”, aponta. Mas afirma que foram proibidos de fazer a estreia de uma peça na sede da UNE, no Rio de Janeiro. “Segundo as autoridades, não havíamos recolhido as taxas da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, ou seja, os direitos autorais. Claro que levamos o espetáculo mesmo com os holofotes e a aparelhagem de som desligados.”

Um momento marcante na formação do grupo foi a invasão do Crusp por Policiais Militares em dezembro de 1968, quatro dias depois da instauração do AI-5. “Muitos de nós tivemos que ir trabalhar, dar aulas, para continuar estudando. Perdemos assim o tempo de lazer indispensável para a criação artística”, afirma o professor. Apesar disso, eles ainda foram capazes de montar uma versão de “Vítimas do Dever”, do romeno Eugène Ionesco, com o financiamento da Comissão Estadual de Cultura.

Cinquenta anos depois da criação do Teatro Novo, Kulesza reconhece a sintonia entre as ações do grupo e os movimentos franceses de Maio de 1968, mas reafirma: “Dificilmente se pode dizer que fizemos alguma apropriação consciente do que acontecia em outras culturas pelo mundo”.

Às vésperas

Na década de 60, Rui Falcão, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), era aluno da Faculdade de Direito, no Largo São Francisco. Entre 1966 e 67, foi presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da USP.

Rui explica que, desde os anos 1960, havia no Movimento Estudantil uma grande agitação em torno da Reforma Universitária. Lutava-se por ampliação das vagas, aumento de recursos para manter a qualidade de ensino e democratização da universidade. Promovidos pela União Nacional de Estudantes (UNE), havia os chamados Centros Populares de Cultura, que buscavam divulgar uma “arte popular revolucionária”.

O Golpe de 64 foi um choque para esses projetos. Logo após a instauração da ditadura, a sede da UNE foi fuzilada e incendiada no Rio de Janeiro. No mesmo ano, estudantes e dirigentes sindicais são presos, enquanto mandatos de políticos são cassados. “Com o golpe, há uma dispersão do ME. Alguns líderes inclusive foram para o exterior”, explica Rui.

Em novembro do mesmo ano, é sancionada ainda a chamada Lei Suplicy. As atividades políticas estudantis são proíbidas e todas as instâncias da representação dos estudantes ficam sob responsabilidade do Ministério da Educação (MEC). “A UNE, as UEEs (União Estadual de Estudantes) e os DCEs são considerados extintos e substituídos por diretórios acadêmicos com uma organização especial, cuja eleição tinha que ser supervisionada por um professor da faculdade”, conta Rui.

A partir dessa lei, há uma divisão no ME: havia um lado mais ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e outro ao bloco da Ação Popular (AP) — que acabaria transformando-se, posteriormente, na Ação Popular Marxista-Leninista.

Se por um lado a AP propunha boicote às eleições e às entidades, “nós, que éramos do PC, defendíamos a conquista dessas entidades para não esvaziá-las e para que a direita não se apossase delas”, explica Rui. Neste contexto, ele é eleito presidente do DCE da USP.

Segundo Rui, de 65 a 67, houve um período de grande agitação política nas universidades. Ele relembra que um livro bastante difundido na época era o “Revolução na Revolução”, do francês Régis Debray. “Era isso que mexia com a nossa cabeça na época. O Cinema Novo, a Revolução Cubana, a Guerra do Vietnã, a Crise dos Mísseis em Cuba, a morte de Martin Luther King”.

De acordo com o ex-deputado, havia um forte movimento cultural de rejeição à ditadura no teatro e na música “O que mais nos chamava a atenção era essa espécie de revolução cultural que ia estourar depois em 68.” Rui cita também a liberdade sexual. “Fomos formados em um rigor muito grande. A virgindade era uma coisa preservada e não tinha sexo antes do casamentos. Então, quando você descobre o mundo e aquela agitação, esses tabus vão sendo todos quebrados.”

Ao mesmo tempo, salienta uma certa contradição, pois se exigia muita disciplina e responsabilidade no Movimento Estudantil. Na própria Faculdade de Direito, o conservadorismo era presente. Os alunos deveriam usar paletó e gravata, além de levantar sempre que um professor entrava em sala.

“Para se ter uma ideia, nós organizamos um grupo de teatro na faculdade que era para recrutar gente para o partido. Uma boa parte do pessoal se entusiasmou pelo teatro e seguiu com ele, porque era uma coisa apaixonante. Me lembro que a gente achava que o pessoal estava se alienando. ‘Poxa, está só pensando no teatro agora?’”

Em 1968, no entanto, Rui aponta que se intensificavam as primeiras ações armadas no país. Com isso, uma parte do ME começou a se dirigir para organizações como a Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). “Depois de 12 de outubro, com a famosa batalha da Maria Antônia, começou a ter gente aqui na Faculdade que entrou na luta armada.”

Dez dias depois, após a invasão do congresso da UNE, em Ibiúna, pelas forças policiais do regime, Rui aponta que o período de agitação atinge seu ápice no AI-5. “A partir daí, o ME vira celeiro de gente para a luta armada. Não só nas universidades, mas também no movimento secundarista, que eu por exemplo era contra”.

Naquele momento, para ele, a clandestinidade passa a não ser apenas uma escolha, mas uma imposição.