Muros concretos e abstratos isolam Cidade Universitária

Decisão de cercar a USP ganhou força a partir da década de 90

Por Rafael Paiva

Cidade Universitária na década de 70 (Foto: EPUSP / Jornal da USP / Acervo Digital da USP)

A Cidade Universitária foi um grande canteiro de obras entre as décadas de 40 e 70 do século passado. Várias unidades da USP, antes espalhadas pela capital paulista, foram transferidas para o local, e outros institutos foram criados. A sociabilidade aumentou: interações culturais e sociais passaram a ocorrer no campus. Mas o lazer e as demais atividades começaram a acabar a partir da implantação de muros e restrições de horários, em meados da década de 90.

Em janeiro de 1995, a USP impôs uma limitação de horário ao público externo, que não poderia frequentá-la entre às 14h de sábado e 5h de segunda. Com a medida, um dos grupos mais afetados foi o da comunidade São Remo. Ainda não havia o muro completo levantado no entorno do campus.

O reitor que na década de 1990 avançou no fechamento, Flávio Fava de Moraes, em entrevista ao livro “USP 70 Anos: Imagens de uma História Vivida”, lembrou do processo de negociação com a comunidade. “O ‘dono’ da favela São Remo era um morador, cujo apelido era ‘Pisca’. Ele controlava as construções, o acesso, o parque infantil, o estacionamento etc. Ele dialogou conosco, aceitou que terminássemos o muro perimetral da USP, desde que fosse deixado um acesso para os seus moradores irem ao Hospital Universitário. O pleito era justo e ele está lá, aliás, tem dois acessos, o outro está mais abaixo, um portão menor, perto da Prefeitura do campus”.

Portaria de pedestres entre a USP e a São Remo (Foto: Rafael Paiva)

Diferentes grupos circulavam pela USP

A realização de grandes eventos ao longo dos anos 80 e da primeira metade dos 90 marcou a história da Cidade Universitária e a memória de seus frequentadores. Milhares de pessoas se reuniam para verem, em pleno solo uspiano, artistas como o maestro Zubin Mehta, na época regente da Orquestra Filarmônica de Nova Iorque. Daniela Mercury e Lulu Santos se apresentaram no programa “Bem Brasil”, que também foi transmitido da USP.

Em virtude dos fechamentos, essa realidade mudou. A USP justificou as restrições à Cidade Universitária com uma lista de argumentos: depredações do patrimônio, comércio irregular, sujeira, número elevado de ocorrências policiais e até cobrança de aluguel por espaços da universidade, como o indivíduo que controlava quem quisesse jogar no campo de futebol. Houve um caso emblemático do ônibus com garotas de programa que atendiam no bagageiro. Segundo Fava de Moraes, na entrevista citada anteriormente, o que aconteceu “não foi fechamento e sim limitação do uso, e só nos domingos e feriados”.

Antes das restrições, de acordo com matérias da época, entre 80 e 100 mil pessoas circulavam pela USP nos finais de semana. Os pedidos de providência para resolução de diversos problemas partiram de diferentes setores, enquanto esportistas reclamavam da ausência de espaços adequados para treinos nos demais parques da cidade. Com os fechamentos, não faltou quem visse a USP ainda mais restrita a uma elite de frequentadores.

Apresentação na Praça do Relógio, em 1980 (Foto: Jorge Maruta)

Atualmente, são vários os sinais de fechamento da USP: a polêmica grade ao redor da “Prainha”, na ECA; a instalação de catracas em prédios; a presença de uma faixa proibindo a circulação de “ciclistas esportivos”, na Rua do Matão; os conflitos sobre os locais onde as baterias podem ensaiar. Existem muros visíveis, invisíveis e agora transparentes, com os vidros na divisa com a Marginal Pinheiros.

O procedimento para entrar na Universidade de São Paulo se assemelha ao de condomínios residenciais: nos horários em que as portarias têm acesso controlado, é necessário apresentar um documento que comprove o vínculo com a instituição. Não é à toa que, por exemplo, motoristas de aplicativos têm dificuldade de pegar usuários nas madrugadas.

Portaria 1 da Cidade Universitária (Foto: Rafael Paiva)

As falas de quem presenciou as diferentes fases da Universidade

O JC conversou com algumas pessoas que vivenciaram o antes e o depois dos muros e controles rígidos de acesso, como Rosângela dos Santos Costa, de 49 anos, moradora da São Remo há 31.

Durante a infância, ela via a USP como se fosse “o Parque do Ibirapuera”. Foi na Cidade Universitária que Rosângela aprendeu a andar de patins aos 10 anos, levada pela tia.

A mesma impressão positiva tinha o comerciante José Ângelo, de 45 anos, frequentador da USP há mais de 35. “Além da USP ser uma Universidade boa, ela também era um campo de lazer. O fechamento complicou um pouquinho. Acho que, com o policiamento que tem hoje, poderia ficar aberta direto ao público, igual o Ibirapuera e o Villa-Lobos”.

Segundo Maria Aparecida, de 57 anos, vendedora do “Big Dog” na USP há mais de 40, junto com o marido, o local era bastante movimentado aos finais de semana. Devido às restrições impostas na década de 90 e a consequente perda da clientela, as receitas caíram. “Fiquei com muita dívida. Tive que negociar com banco e tudo. Bagunçou a nossa vida”.

Rosângela e José admitiram que algumas pessoas não sabiam conservar o local.

Maria Aparecida trabalha no campus há mais de 40 anos (Foto: Rafael Paiva)