A carne dos esquecidos

 

Por Caio Nascimento

Ilustração de Arthur Aleixo

Há dois anos, o amigo de um brother meu foi baleado no pescoço por um policial militar, e uns meses atrás exumaram o corpo dele a pedido da Justiça. Filho negro da Dona Elzira, ninguém sabe direito o porquê do assassinato. Era um cara de talento, funkeiro de primeira linha. Chegava na roda de viola, embaixo da árvore da minha casa, mirando a rima, engatilhando os versos e atirando poesia no peito de quem estava ao seu redor. A alma daquele mano de 12 anos de idade gritava e me enchia de ímpeto para seguir em frente. As más línguas diziam que o moleque andava com gente errada. A tiazinha religiosa lá da goma sempre falou que ele não prestava, que a família ia pagar pelo “bicho solto” que estava criando dentro de casa.

E de fato pagou.

Pagou porque pobre favelado não pode ser livre para expressar a sua arte da mesma forma que o playboy de Perdizes tem carta branca pra pegar o carro do pai, encher a caranga de multa e entupir o nariz de cocaína num camarote da Vila Olímpia. Para justiça brasileira, esses caras que comem croissant salpicado em pó de ouro não têm maturidade para responder criminalmente pelas suas atitudes.

Esta é a Lei: compreensão para o bacana e bala no pescoço do artista nascido num barraco de madeirite da Vila Brasilândia.

Todo dia, jovens da periferia são violentados, humilhados e assassinados como o filho da Dona Elzira. Vários são encaminhados para gaiolas superlotadas. Muitos, com dez anos de idade, aprendem a odiar o PM valentão que cospe, bate, sufoca, enfia um cano no ânus de um suspeito e mata para ensinar o que é a Ordem dessa porra de pátria. Carrinho é substituído por revólver de numeração raspada; boneca é trocada por minissaia, maquiagem e batom.

Nem Lúcifer aguentaria viver neste inferno que criamos. Reduziram a Constituição Federal a uma pilha de pneus em chamas com um moleque dentro, diminuíram as políticas de paz aos obituários e caminhões funerários saídos de dentro das favelas.

O dano disso é irreversível. Segundo dados do relatório “Custos econômicos da criminalidade no Brasil”, lançado neste mês pela Presidência da República, o país perdeu cerca de 550 mil reais a cada homicídio de jovens de 13 a 25 anos entre os anos de 1996 e 2015. No período, isso acumulou um prejuízo de mais de 450 bilhões de reais para os cofres públicos, que poderia ser investido em cultura, esporte, lazer e educação para a meninada aliciada pelo tráfico para fugir dos bolsões de miséria.

Não consigo dormir em paz enquanto milhares de pobres são desovados nos becos frios e sangrentos das periferias brasileiras; enquanto padrão econômico define expectativa de vida; enquanto o reconhecimento de uma criança se der pela arcada dentária no necrotério do IML; enquanto um mano cheio de futuro deixar de estudar pra ficar numa biqueira entregando maconha para a classe média intelectualizada.

Quero que se dane o ecletismo ideológico fechado nas salas da Academia e nos movimentos estudantis elitizados de algumas universidades brasileiras. Enquanto falam pra dentro, a juventude continua cometendo latrocínios, torturando em cativeiro e invadindo condomínios de alto padrão. Meninas raquíticas continuam se prostituindo por pedra de crack e amanhecendo estuprada numa cama de motel em troca de 10 reais.

O país perdeu cerca de 550 mil reais a cada homicídio de jovens de 13 a 25 anos entre os anos de 1996 e 2015. No período, isso acumulou um prejuízo de mais de 450 bilhões de reais para os cofres públicos

Dados do relatório “Custos econômicos da criminalidade no Brasil”, da Presidência da República

Isso me machuca. Em tempos como os de hoje — em que muitos só lembram o que é Estado de Direito quando um político conhecido é preso —, o sangue sobe à cabeça e me vem a imagem do Guilherme, do Johnatan, do Rodrigo, da Melyssa e das minas da Fundação Casa, com quem vira e mexe troco uma ideia. Seres invisíveis e humilhados por vermes corruptos que ostentam a desgraça alheia com colares de diamante. O que dizer desses que foram mais injustiçados pelo mundão do que qualquer engravatado do alto escalão dessa política brasileira infame, duvidosa e assassina?

Dói no peito ver pais que perderam suas crias para um camburão manchado de sangue; olhar a molecada correr para escola precária só pra matar a fome na hora da merenda; ver a juventude sem serviços básicos virando caso de polícia na mão de marmanjo fardado; assistir mães periféricas chorando sobre o caixão de seus filhos assassinados após uma sobrevida sem quaisquer Direitos.

Vejo essas tragédias se arquitetando todos os dias ao cruzar a esquina. Isso estilhaça a minha consciência e desce seco na garganta quando saio do ônibus. A fúria me consome. Não aceito isso. Enquanto viver pouco como um rei for a melhor resposta pra não sobreviver pouco como um zé, a chama por mudança continuará residindo dentro de mim.