Percepções de quem estudou no país da Copa

Conheça as raízes da cultura de um país que viveu a Revolução a partir das experiências e percepções de brasileiros que viveram lá para estudar

Arte: Larissa Fernandes

Por Mayara Paixão

A seleção escolhida por Tite para representar o Brasil na Copa do Mundo na Rússia está tendo que enfrentar terras frias, baixa umidade e uma cultura muito diferente da brasileira. O que nossos jogadores enfrentarão por um mês é a realidade que muitos brasileiros e brasileiras passam ao tomar a decisão de estudar nas terras que foram palco do maior laboratório do socialismo no mundo com a Revolução de 1917.

Mas, afinal, quem é esta terra que abriga a Copa do Mundo 2018, quais são suas tradições e qual a herança deixada pelos processos revolucionários à população que, há quase duas décadas, vive sobre o governo de Vladimir Putin? Para entrar mais no universo russo, o JC conversou com brasileiros que moraram e estudaram por lá.

Protagonista

Seja como Império Czarista, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou uma nação democrática, o território russo nunca se apaga do cenário geopolítico mundial. A terra de Lenin, Josef Stalin e Alexandra Kollontai sempre esteve no centro das discussões.

Para o especialista em Rússia e URSS e professor do Departamento de História, Angelo Segrillo, o fator central relacionado a esse protagonismo tem relação direta com o território russo — não apenas com a sua extensão, que a concede o posto de maior área do planeta, mas também pela localização central no globo.

“Isso a coloca, exagerando um pouco, sempre no centro dos acontecimentos”, comenta Segrillo. “Existem outros países eurasianos, mas que são pequenos, e não tiveram tanta influência na história. Mas, com aquela posição central e com aquele tamanho, ela se tornou um ator permanente no centro dos acontecimentos mundiais, influenciando a história tanto da Europa, quanto da Ásia.”

Um país, muitas nações

A extensão territorial traz peculiaridades externas ao país, mas também internas. De acordo com o professor, “o que a gente chama ‘cultura russa’ é uma entre quase 160 culturas diferentes que convivem na Rússia”, a caracterizando como um um país multinacional, ao contrário de muitos países ocidentais.

Diferente do Brasil, onde a nacionalidade de uma pessoa é definida pelo chamado “jus soli”, o direito do solo — ou seja, nascidos no Brasil são brasileiros —, na Rússia, a nacionalidade é determinada pelo chamado ‘jus sanguinis’, o direito do sangue. Por isso, a nacionalidade do pai ou da mãe caracteriza um cidadão como russo. “Isso eterniza as diferenças entre nacionalidades”, explica o professor.

“Essas nações que existem lá dentro se veem no direito de ter sua própria língua e seus próprios costumes. Isso cria, por um lado, um potencial de conflitos inter-nacionais grande — como é o caso da Chechênia — mas também cria uma riqueza cultural imensa.”, defende Segrillo.

Raízes da revolução

A relação de Segrillo com a Rússia não se resume apenas à atual atuação profissional do professor. Em 1989, o autor de diversos livros, entre eles “Os Russos e Karl Marx: uma biografia dialética”, chegava às terras eurasianas para fazer mestrado na Instituto Pushkin de Moscou. Engatou em um doutorado com bolsa sanduíche e, no total, foram seis anos de vivência no país.

O carioca assistiu do fim do bloco socialista em 1991 ao início da crise econômico-social dos anos 1990. “Quando eu cheguei era União Soviética e, quando saí, já não era.”

De acordo com ele, a Revolução Russa fincou raízes no país, porque foi nativa, feita por russos. Com isso, o processo revolucionário carregou muitos dos valores existentes entre os camponeses e o povo pobre russo, como o da coletividade. “Os camponeses, desde muitos séculos, tinham um modo de vida coletivista.”

“A revolução não foi uma ruptura total com o passado. Talvez uma das coisas que fez com que ela vingasse na Rússia foi que ela pegou elementos do passado russo que já era coletivo, ao contrário do modo de vida ocidental, que enfatiza mais o individualismo, e aprofundou em outras direções. E muito disso se mantém até hoje, apesar da Rússia ter se tornado capitalista”, pontua.

Os anos que passou na Rússia mostraram ao professor desde peculiaridades, como o fato de os russos serem grandes entusiastas da leitura, até percepções sociais mais amplas das raízes fincadas pela revolução dos trabalhadores. “Eu andava no metrô, parecia que estava em uma biblioteca, todo mundo lendo”, comenta.

A percepção das heranças deixadas pela Revolução ao povo russo desenharam também o tema da tese de doutorado de Henrique Canary no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa. O historiador estuda a nostalgia soviética, mostrando como a cultura russa hoje reflete o passado soviético do país.

Em 1995, aos 19 anos, o então estudante gaúcho de história da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), conseguiu uma bolsa do governo russo — à época sob o mandato do ex-presidente Boris Yeltsin — que lhe forneceu educação gratuita e moradia estudantil.

Foi dividindo quarto com peruanos, japoneses e camaroneses que Canary, interessado na história da Revolução Russa, chegou ao país não sabendo nada de russo e, em um ano, aprendeu o idioma estudando na Universidade Russa da Amizade dos Povos, fundada na década de 1960 com o espírito internacionalista de receber estudantes africanos e asiáticos e devolvê-los com mão de obra intelectual para seus continentes, cujas nações faziam a luta por independência efervescer. “Tinha e tenho uma visão de esquerda, reivindico o socialismo e tinha esse sonho romântico de conhecer a terra da revolução.”

Canary explica que “essa euforia com o capitalismo e com a sociedade ocidental, com essa integração, foi um sonho que rapidamente se desfez. A partir do final dos anos 90, uma parte da população começou a sentir saudades, achar que a troca, talvez, não tenha valido a pena. O passado soviético, renegado, começou a reaparecer na memória das pessoas, principalmente na cultura”.

Capitalismo

“Quando você entra depois do fundo do poço, a tendência é melhorar, por definição. Do fundo do poço você não passa.” É brincando assim que o professor Segrillo define o início da era de Vladimir Putin à frente da Presidência russa.

Segrillo faz referência à época em que Putin assumiu o governo russo, logo após a recessão econômica e perdas sociais da década de 1990 envolvidas na transição de uma economia planificada e controlada pelo Estado para uma economia de livre mercado. “Putin entrou e virou um deus porque, em menos de um ano, a economia estava crescendo e os salários e aposentadorias estatais, que viviam meses atrasados, sendo regularizados.”

Em meio ao quarto mandato presidencial, o ex-agente da KGB — principal organização de serviços secretos da União Soviética — goza de alta popularidade entre a população. Segundo a pesquisa mais recente do Instituto Levada, o nível de aprovação chega a quase 80%.

As melhorias econômicas, no entanto, vieram coladas em um endurecimento político e de uma recentralização das ações do estado. “Há uma revalorização da religião, da Igreja Ortodoxa e dos valores tradicionais”, acrescenta Henrique Canary. “Isso serve como uma desculpa para uma política conservadora no campo das liberdades políticas, e também no terreno dos costumes.”

“Tem um termo que chama ‘democracia dirigida’. Ou seja, lá não é uma ditadura. Formalmente, é uma democracia. Putin é eleito, mas, em termos informais, há vários mecanismos pelos quais ele podem controlar o processo que, em democracias mais desenvolvidas, ele talvez não pudesse fazer”, caracteriza Segrillo.