“Numa hora de crise, uma parte da sociedade adota a solução autoritária”, afirma Maria Rita Kehl

Por Ana Helena Corradini 

Psicanalista por formação acadêmica, Maria Rita Kehl tornou-se jornalista na prática há décadas. Além disso, ela ganhou um prêmio Jabuti na categoria não ficção, com o livro O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões, em 2010, e atualmente integra a Comissão da Verdade.

A formação transdisciplinar permite à Maria Rita analisar o presente e o passado político brasileiro de maneira complexa. Na Entrevista ao JC, ela comenta sobre estado do atual governo, perspectivas para as próximas eleições e não se esquiva diante de temas duros como a consequência da anistia pós-ditadura para o país.

A juventude, que hoje tende a dar um voto de direita nas próximas eleições, também foi discutida pela entrevistada.

Há poucas semanas da Copa do Mundo, não vemos ruas pintadas nem bandeirinhas espalhadas. Se a sociedade fosse um paciente, essa apatia seria um sinal de depressão?

É muito difícil diagnosticar algo que não está no seu consultório. Não sei se é depressão, mas posso falar um pouco sobre as pessoas que estão a minha volta: eles estão putos! Com o governo, com a crise, com o país desmantelado. Então, torcer para quê?

Você tem razão, nem ouço meus amigos falarem em Copa, nem meus pacientes, nada. Acho que tem coisas que estão tão graves no país, que as pessoas não conseguem se entusiasmar com a seleção. E, se ganhar, vai ser péssimo, porque de qualquer maneira o governo de plantão sempre se beneficia um pouco com esse sentimento de euforia de uma Copa do Mundo.

Outro caso emblemático foi a prisão do Lula. Você considera problemático um ex-presidente ter sido preso sem que houvesse uma mobilização forte o bastante para impedir isso?

É uma prisão injusta, totalmente política para ele não concorrer. E todo mundo sabe que é injusta, quem prendeu sabe que é injusta. O próprio Lula disse isso: “A partir de agora, se me prenderem, eu viro herói. Se me matarem, viro mártir. E, se me deixarem solto, viro presidente de novo”. Ele sabe que está preso para não ser eleito e continua em primeiro lugar nas pesquisas. Aí as pessoas ficam completamente desanimadas.

Mas há quem concorde com o impeachment e com o atual cenário político. O Brasil estaria muito dividido por isso?

O Brasil, aliás, o mundo sempre esteve dividido. Direita e esquerda faz parte do mundo e a luta de classes é isso. Os que detêm os meios de produção têm seus interesses e os que são explorados tentam virar mesmo. Acho que uma revolução já está fora do cenário no capitalismo atual, com a precarização do trabalho. Nem eu tenho mais o entusiasmo que já tive, porque, para manter uma nova ordem, a revolução sempre implica no uso da força – policial, militar etc.

Acompanhamos na última semana a greve dos caminhoneiros. Como você avalia o movimento?

Não sei se essa greve foi progressista, porque os caminhoneiros não são uma categoria progressista. E essa greve prejudica todo mundo, inclusive os trabalhadores.

Eu acho que a categoria tem o direito de reivindicar. Mas não acho que o sentido dessa greve é ser contra o Temer. É uma greve da categoria. Ela não teve adesão da população, não é que todo mundo foi para as ruas. Então não acho que essa greve seja um sinal de mudança.

O novo slogan do governo Temer, O Brasil Voltou, 20 anos em 2, pode ser considerado um ato falho?

Muito bom, isso é demais! Quem fez isso só não é mais burro do que o Temer. Um ato falho é exatamente quando você diz algo que não deveria dizer em um ambiente, mas que revela um pensamento que estava tentando esconder.  Acho muito difícil psicanalisar alguma coisa que não tem um sujeito ali. Mas pode-se apelidar [o slogan] de um ato falho. Quer dizer, no fundo o presidente sabe que o Brasil voltou para trás, 20 anos em 2, e ele aceitou esse slogan.

E para próximas eleições?

Sai o presidente mais impopular da história do Brasil. Pelo menos algo sensato, ele disse que não vai mais concorrer – com 3% de intenção de voto, seria uma vergonha.

Numa hora de crise, uma parte da sociedade começa a apostar em uma solução autoritária. Terrível pensar que o Bolsonaro tem chance, porque seria uma ditadura pelo voto. É pior do que um golpe militar, porque em um golpe militar a ilegitimidade está evidente. Uma ditadura pelo voto é legítima! E é um cara que vai perseguir minorias, proibir manifestações, descer o cacete em operário que faz greve. Quer dizer, é uma perspectiva terrível.

Em 2010, o seu artigo Dois Pesos… gerou muitos comentários – tanto positivos, quanto negativos – e motivou a sua saída do Estadão. O episódio foi um divisor de águas na sua carreira?

De jeito nenhum, porque eu estava no Estadão há nove meses só. Eu escrevia uma coluna a cada 15 dias, tanto que eu lancei um livro depois, com aquelas 18 crônicas e mais algumas. Eu continuo sendo jornalista, escrevendo para lugares, eu gosto disso, não vou deixar de escrever. Não posso dizer que fui demitida, porque não era contratada: a minha coluna foi cancelada. Enfim, foi uma experiência interessante, que durou muito pouco.

Só fiquei chateada porque a editora que me chamou sabia que a minha batata estava assando e não quis me falar, disse que não queria me censurar, não agiu de má fé. Mas ela podia ter me avisado e eu decidia se mudava um pouquinho, se dava uma moderada.

Acho até que o cancelamento da minha coluna teve mais repercussão do que a minha coluna. Porque foi para as redes sociais, viralizou. Naquela época eu tinha lançado meu livro O Tempo e o Cão e, não sei se por conta daquele episódio, se tinha algum viés político, ganhei o prêmio Jabuti do ano. Eu na categoria de não ficção e o Chico Buarque na categoria de ficção. Então não posso ficar chateada.

Você considera um ataque à liberdade de expressão?

No Brasil não tem liberdade de imprensa, tem liberdade de empresa. Quer dizer, uma empresa como a Veja pode colocar os editoriais mais fascistoides que ela quiser, porque está de acordo com o dono da empresa, conselho editorial, não sei, tá todo mundo a favor. Então, pode fazer o que quiser, porque é uma empresa privada. Dentro da empresa, a gente já não sabe se tem essa liberdade toda. O Estadão continua saindo, fui eu que saí, minha coluna que foi tirada. É liberdade de empresa.

É possível traçar paralelos entre a ditadura militar e o cenário atual?

Não. O problema é o seguinte, o Congresso funciona, mas o Congresso está dominado por uma quadrilha, que eu chamo de PMDB. O PMDB já foi um partido precioso, foi o único de oposição do qual, nos anos 80, alguns deputados e senadores conduziram a abertura política. Eram militantes contra a ditadura, quando só tinham dois partidos: o MDB, que a gente chamava o partido do “sim”, e o Arena, o partido do “sim, senhor”. O MDB falava “sim”, mas não tirava o chapéu para beijar a mão dos ditadores. Depois, aos poucos, quando começou a haver um pouquinho mais de liberdade, no último governo da ditadura, do Geisel pro Figueiredo. Agora a gente está descobrindo, com os documentos da CIA, que o Geisel mandou matar um monte de militantes presos. Autorizou, ele deu carta branca para matar os guerrilheiros do Araguaia e militantes que foram mortos pela tortura. O Herzog foi morto e o Rubens Paiva desaparecido.

Não dá para fazer um paralelo, mas dá para fazer uma espécie de linha de continuidade, comparando o fim da nossa ditadura com a de outros países da América Latina e a permanência do conservadorismo. Quando a ditadura foi terminando, todos os países da América Latina que tiveram ditadura – Argentina, Uruguai e Chile, o Peru foi em outro momento – julgaram e prenderam seus torturadores, enquanto o Brasil fez uma anistia para os dois lados.

Os próprios familiares e militantes aceitaram a negociação de uma anistia, para conseguir que os generais tirassem da cadeia os últimos presos políticos ainda vivos. Eu entendo a motivação dessas pessoas que queriam soltar logo seus parentes, mas foi péssimo para o Brasil, porque teve uma continuidade do autoritarismo, no Congresso e na sociedade. E o fato de os presidentes não terem sido julgados, de anistiarem os militantes políticos e os torturadores, é como se os crimes fossem da mesma ordem. Crimes praticados por agentes do Estado sobre pessoas presas, que estão sob a sua custódia, são crimes de lesa-humanidade, não é um crime comum. Isso é inafiançável, não tem anistia para esse tipo de crime. Termos feito uma anistia para os dois lados tem efeitos terríveis para a sociedade. A nossa complacência com o autoritarismo. Tem gente que acha a nossa ditadura foi uma ditadura branda, que não matou tanta gente assim.

Desconserto jovem

Em uma matéria da revista Cult, você diz que tem “fobia de pensar que vou entrar em uma forma” e conta que, no início, quando cursava faculdade, “era como se eu não tivesse uma definição muito clara de mim mesma”. Eu percebo que os jovens parecem perdidos em relação ao futuro e parece que, quando entram na faculdade, há uma quebra de expectativas, o que acaba gerando ansiedade, angústia. Como você enxerga isso?

Primeiro, deixa eu explicar uma coisa de entrar numa forma. Por exemplo, tinham muitos grupos feministas com as pautas muito claras e eu não quis entrar em nenhum deles, embora me considere uma feminista. Até hoje posso apoiar, ir em passeata, mas às vezes esses grupos criam uma espécie de uma fronteira que impede de fazer aliança, solidariedade com outro que está muito perto e pensa um pouquinho diferente. Na ditadura, talvez como um efeito da opressão, a esquerda começou a formar grupos, primeiro da luta armada clandestina, que se dividiu. Nem ao menos se uniu nessa hora, para fazer alguma coisa mais poderosa. Depois, na época dos jornais, também. Minha formação política foi em jornais de esquerda, mas eles rompiam cada vez que surgia uma divergência sobre a linha política daquele jornal. A gente mais se dividia do que se unia. As questões não eram de interesses ou de dinheiro, as disputas eram de ideais. Acho que isso foi o grande mérito do Lula, por isso que ele conseguiu ser presidente e por isso uma pequena parte da esquerda mais radical não o apoiava. Ele fez uma pauta de mudança social que não era uma revolução. O Brasil não tinha clima nenhum para fazer uma revolução, mas ele conseguiu tirar o Brasil da linha da miséria, incluir negros nas universidades, legalizar quilombos. É muita coisa. A minha posição, e a posição de muitas pessoas ligadas ao PT, é que o Brasil é tão conservador que já é difícil reformar o capitalismo, torná-lo mais justo, algo um pouco mais parecida com o socialismo democrático europeu. Nem isso nós conseguimos.

E como você vê a ansiedade da juventude hoje?

Eu posso só pensar em voz alta. Eu já me preocupava um pouco com a geração dos meus filhos, porque era a geração televisão. A minha geração cresceu numa época em que a programação da televisão começava às seis da tarde. Mais tarde começou a partir do meio dia. E terminava às dez da noite, aparecia o indiozinho da TV Tupi, que hoje nem existe mais, e acabava a programação. Antes disso a gente tava brincando, lendo. Eu não estou usando a minha geração no sentido de que era melhor do que a de vocês, mas é a referência que tenho. A imaginação era fundamental para você não se entediar. E a imaginação é uma capacidade, que todo ser humano tem, que não faz só com que a gente se divirta mais, como também com que a gente se sinta mais livre diante do mundo que está aí. Vamos supor, um adulto que cresceu tendo a possibilidade de exercer a imaginação pode se unir a outros e começar a pensar, não na grande solução, mas em dispositivos e atitudes que vão alterando a realidade. 

Pode-se dizer que o tédio, ficar sem nada para fazer, nos estimula a imaginar soluções?

Certamente, o tédio e a ociosidade – porque às vezes você não está entediado, está só ocioso. Monteiro Lobato, que foi um autor muito lido na minha época e da minha mãe, mas que hoje não é muito lido, tinha uma coisa muito interessante. Duas crianças, uma boneca de pano e um boneco feito de sabugo de milho viviam inventando aventuras. Em um dos livros, eles começam a inventar aventuras porque estão entediados. Eles estão sentados na sala, está chovendo, não tem como brincar, não tem televisão e eles começam a inventar, e inventam coisas fabulosas. Tudo bem que quem inventa aquilo é o Monteiro Lobato, mas ele sabia que crianças, quando não tinham nada para fazer, inventavam traquinagens.

Hoje a gente não fica sem nada para fazer, a gente não inventa nada. Eu que não estou nas redes sociais, vejo nos aviões, quando manda desligar os celulares, pouquíssima gente pega um livro. E como hoje em dia já pode fazer alguma coisa no celular no modo avião, as pessoas continuam no celular. Elas estão o tempo todo no mesmo tipo de dialoguinho, no mesmo tipo de imagem. Gosto muito de cinema, algumas séries de TV, gosto muito de música, teatro, as formas da arte todas me interessam muito, mas o livro tem uma capacidade, como é tudo só pela palavra, você tem que completar, as imagens estão só na sua cabeça. É muito interessante porque na leitura a imaginação está o tempo todo trabalhando, mesmo que a história seja dada pelo outro que escreveu.