Rugby feminino da USP recorre a vaquinhas para participar de campeonatos

No Brasil, investimento e apoio para equipes femininas ainda são escassos

Rafaella Fuscella e Lana D’Ávila do Rugby USP (Foto: Bárbara Cavalcanti)

Vitor Garcia

Olhando pela primeira vez, a situação parece confusa. Dois times femininos de rugby, ambos com USP no nome, fazendo vaquinhas para competir em torneios. Um observador apressado poderia pensar que se trata de apenas uma duplicação. Mas a situação escancara as dificuldades pelas quais passa o esporte no Brasil, com crescentes cortes de gastos e falta de investimento. O cenário é ainda pior quando se trata de equipes femininas.

De um lado, o clube Rugby USP luta para participar de um dos maiores campeonatos de rugby, o Valentín Martínez, no Uruguai. De outro, a Seleção USP de Rugby Feminino busca meios de chegar ao Mundial de Rugby Universitário, na Namíbia. Ambas encontraram na vaquinha online uma alternativa para alcançarem seus objetivos.

A situação parece ser comum no rugby. Só no Vakinha, uma das plataformas de arrecadação online de recursos, 45 campanhas direcionadas à modalidade estavam ativas no fim de maio, dos diversos cantos do país.

“No Brasil, em geral, se valoriza muito alguns esportes específicos, que são mais midiáticos e têm apelo maior da população, como o futebol e o vôlei. O rugby, por ser um esporte incomum para o brasileiro, acaba enfrentando ainda mais dificuldades para angariar fundos”, explica Gabrielle Peloso, jogadora da Seleção.

No Rugby USP, a opinião se reproduz. Isabel Vigneron relembra que a modalidade passou recentemente por um episódio simbólico: nas Olimpíadas de 2016, o rugby apareceu novamente como modalidade. “Como os jogos aconteceram aqui no Brasil, surgiu muito incentivo e pessoas apoiando. Mas assim que acabaram as Olimpíadas, tudo sumiu. Isso é um reflexo muito marcante do que é o rugby feminino.”

Larissa Oliveira, da Seleção, explica que a falta de financiamento é uma realidade atrelada mais fortemente às equipes femininas, que normalmente contam com menos incentivos. De acordo com ela, os times da modalidade sobrevivem há anos por iniciativa própria das mulheres que praticam o esporte.

“A grande maioria do apoio e patrocínio vai para o masculino. E este ano, com a Copa do Mundo, a situação se complica ainda mais, já que o foco passa a ser o futebol”, completa Isabel.

O rugby

As origens do rugby, assim como qualquer outro esporte, não são totalmente claras. Embora o jogo tenha sido praticado já nos anos 1820, foi apenas em 1846, na Inglaterra, que  as primeiras regras da modalidade foram escritas.

O esporte conta atualmente com duas versões: o XV e o Sevens. A primeira delas, como o próprio nome diz, conta com 15 jogadores e 7 de reserva. Suas partidas são compostas por dois tempos de 40 minutos. A modalidade Sevens traz times com apenas 7 jogadores titulares e 5 substitutos, com dois tempos de 7 minutos cada. Tanto o Rugby USP e a Seleção, quanto as nove equipes ligadas a faculdades da USP hoje existentes, dedicam-se a modalidade Sevens.

No rugby, a bola, que tem formato oval, só pode ser jogada para o lado ou para trás. Caso queira arremessá-la para a frente, o jogador precisa chutá-la. Além disso, ainda que o esporte seja conhecido pelas cenas de contato e de choques,  o único jogador que pode ser derrubado é aquele que está com a posse da bola – ação que é chamada de tackle.

As formas de pontuar são três: o try, a conversão e o drop goal. No try, o jogador precisa apoiar a bola contra o chão do gol adversário, que fica atrás da linha do gol – conhecida como linha dos Hs, devido ao formato da estrutura. Essa pontuação dá direito a um chute para os Hs, chamado de conversão, que gera pontos para o time caso a bola passe entre as traves e acima do travessão do H. Já o drop goal consiste em um chute em direção ao gol após a bola quicar no chão – a pontuação segue o mesmo modelo da conversão. Por fim, há o pênalti, que também segue o procedimento da conversão mas apenas em caso de faltas graves.

Seleção USP de Rugby Feminino (Foto: Divulgação)

Seleção: conquista de um espaço

Criada em 2016, a Seleção USP de Rugby Feminino reúne atletas que se destacam na modalidade dentro dos nove times da Universidade. A equipe é ligada à LAAUSP (Liga Acadêmica das Atléticas da USP) e foi criada com o objetivo de trabalhar as habilidades individuais das atletas, aumentando indiretamente o nível do rugby dentro das demais equipes.

Desde o início, porém, o time sofreu para se concretizar. Além de problemas financeiros, havia a dificuldade de reunir pessoas suficientes para a nova equipe. Conflitos de horários, falta de locais adequados para treinos e diminuição da participação das atletas ao longo do tempo eram as principais causas.

Gabrielle conta que a Seleção surgiu como um sonho das treinadoras Rafaela Turola e Beatrice Parra.  A maioria das modalidades já possuía uma seleção USP. “Elas queriam que, com isso, o esporte conseguisse conquistar um espaço mais consolidado, já que faz uma grande diferença ter uma seleção representando a universidade como um todo”, explica.

Segundo Turola, em seu primeiro ano, a seleção dedicou-se a fazer com que o rugby feminino dentro da USP crescesse por meio do aperfeiçoamento dos  fundamentos esportivos das atletas. Apenas no segundo ano, foi que a equipe começou sua parte tática, com a participação em campeonatos.

Ultrapassando as dificuldades, o sonho avançou e a equipe participou, neste ano, dos Jogos Universitários Brasileiros (JUBS) de Rugby Sevens. Lá, o time se consagrou campeão e garantiu sua vaga no Campeonato Mundial de Rugby Universitário, que ocorrerá em julho na Namíbia.

A equipe luta agora para conseguir representar o Brasil no campeonato. Isso porque apesar de a situação da Seleção estar melhor hoje devido ao apoio da LAAUSP, que garante um campo adequado às jogadoras e o pagamento dos técnicos, as dificuldades financeiras são constantes, inclusive com falta de materiais.

A ideia da vaquinha surgiu porque a equipe contava com um tempo muito reduzido para coletar o dinheiro, o que dificulta a busca por patrocínio. A campanha online se encerra no dia 10 de junho, mas elas ainda precisam de recursos para a viagem, já que não contam com um patrocínio fixo.

Por trás do sonho do mundial, se esconde o desejo de poderem difundir ainda mais o esporte na USP. “A gente se dedica muito à modalidade e tem muito amor pelo rugby. Todas nós treinamos 4 ou 5 vezes por semana. E, talvez, esse projeto de ir para fora e de angariar fundos consiga difundir ainda mais a modalidade por aqui”, conta Gabrielle.

Para Turola, o significado do torneio vai além. “Representa todo o processo que passamos. Ter meninas brigando e vermos como esses dois últimos anos foram difíceis para concretizar a seleção. Então, é muito gratificante ter essa oportunidade.”

O time busca aproveitar o impulso do mundial para estabelecer um caixa firme para o futuro. “A gente quer continuar construindo esse caminho e que mais meninas nos procurem para fazer parte da Seleção”, completa Turola.

Dez anos de clube Rugby USP

As histórias do Rugby USP e da Seleção se encontram e se mesclam. O time foi por muito tempo uma das únicas equipes femininas de rugby da Universidade. Isso fazia com que a equipe disputasse vários torneios levando o nome da USP. Por reunir meninas de várias faculdades, o Rugby USP contou também com muitas atletas da Seleção, que jogam nas duas equipes. A própria Turola, técnica da Seleção, começou jogando no clube.

O clube Rugby USP surgiu em 2008 com o objetivo de participar de um campeonato específico: o Lions Rugby 7s – o maior torneio que estava ao alcance do time. Na época, a equipe teve apenas quatro meses para se preparar. “A primeira vez que o time entrou para jogar, elas nunca tinham treinado em um campo dentro das proporções reais de jogo”, relembra Isabel.

Diferente de muitos outros times que treinam na USP, geralmente ligados às atléticas das faculdades, o Rugby USP tem hoje o status de clube. Isso permite que muitas uspianas formadas continuem na equipe.

Em seu início, o clube enfrentou também dificuldades para reunir atletas, naquele momento o rugby era ainda menos conhecido no Brasil. Hoje, porém, o time consegue manter um grupo equilibrado que treina frequentemente e participa de campeonatos brasileiros e paulistas. A decisão de não participar mais de competições universitárias ocorreu após o time se tornar um clube institucionalizado.

Devido a isso, o objetivo do Rugby USP para este ano é outro: jogar o interclubes internacional Valentín Martínez, no Uruguai. Apesar de agora contar com o patrocínio fixo de um empresa, cujo dono apoia outros times femininos no Brasil, são as mensalidades que sustentam o time. “Por mais que haja meninas formadas e que trabalham, a maior parte ainda é universitária. Então, nem sempre elas conseguem pagar”, explica Lana D’Ávila, tesoureira do clube. “Mas a gente tem a política de que ninguém deve deixar de participar por causa disso”.

Por isso, a situação nem sempre é fácil: o time precisa pagar o campo em que treina e demais gastos, como o salário simbólico aos técnicos Isadora Cerullo e Devon Muller.  A vaquinha foi a ideia encontrada para participar do mundial.

Por ser o ano em que o time completa seus 10 anos de existência, a participação na competição é ainda mais simbólica. “Para qualquer clube feminino de rugby, cada ano é uma vitória porque é muito difícil conseguir manter uma consistência de participação. E a gente conseguiu isso sendo um clube que nasceu com 100% de iniciativa feminina, o que é bem inédito no cenário do rugby”, explica Isabel.

Os times femininos

“A balança está se alterando. No começo, os times femininos tinham uma participação especial nos torneios. Hoje em dia, já acontece campeonato que tem jogo demonstrativo de masculino, não de feminino. É só ver a quantidade de time feminino que tem aparecido de uns tempos pra cá. Isso é uma conquista de espaço”, relata Isabel.

Por muito tempo, o rugby foi visto como um esporte voltado quase exclusivamente para homens, devido à sua aparente brutalidade. O esporte, porém, pelo menos na modalidade Sevens, acaba sendo mais voltado para velocidade e evasão do que o contato.

“A mulher dentro da sociedade é vista como um corpo frágil e delicado, que não tem força ou que não pode demonstrar que tem. E o rugby é um esporte em que o tempo todo há força, contato, velocidade, agressividade. Não é um esporte bruto, é apenas intenso. E acho que para uma mulher entender e descobrir que ela tem força pra isso, é difícil, o que faz com que muitas delas achem que não estão preparadas para a modalidade”, explica Gabrielle.

Isabel aponta que, embora ainda haja um longo caminho a se percorrer, a situação do rugby feminino já é muito melhor do que era há 10 anos. “No começo, os poucos jornais que cobriam o rugby feminino vinham sempre com perguntas do tipo: como você concilia o seu lado feminino com esse esporte tão bruto? Como dá para manter as unhas feitas jogando rugby?”.

Stephanie Kazniakowski, atleta do Rugby USP, explica também que a modalidade universitária do esporte vem crescendo. Isso, indiretamente, leva à expansão do rugby feminino como um todo. “O que a gente vem fazendo para difundir mais o esporte entre as mulheres é participar de vários campeonatos, principalmente nas faculdades. É lá que as pessoas conseguem nos ver e perceber que não é só quem é muito forte que joga. Verem que têm pessoas de diferentes corpos, alturas e idades, e que o tamanho físico não é um empecilho”, completa Larissa.