Para pesquisadora, greve dos caminhoneiros é chance para mídia criar novas narrativas

Por Igor Soares

Imagem: Stefaní Martini

Postos de gasolina fechados, prateleiras esvaziadas nos supermercados e encomendas que não chegaram a seu destino: mesmo longe das estradas, o brasileiro sentiu na pele os efeitos da greve dos caminhoneiros que paralisou o país nas últimas semanas.

Entre suas reivindicações, a categoria pedia a redução do preço dos combustíveis e melhorias nas condições de trabalho.

Recentemente, em sua tese de doutorado (Jornalismo em trânsito – o diálogo social solidário no espaço urbano), Mara Ferreira Rovida analisa a dimensão solidária presente na cobertura e nas narrativas construídas por repórteres que atuam no espaço urbano, tendo como base a ideia de solidariedade orgânica, concebida por Émile Durkheim.

A jornalista parte da observação de uma cobertura jornalística envolvendo um caminhoneiro onde o repórter constrói sua narrativa de uma maneira que mudou positivamente a forma como o público enxerga o profissional.

Em entrevista para o Jornal do Campus, Mara fala sobre seu estudo, a imagem que os caminhoneiros possuem na mídia e a forma como ele foram retratados durante a greve.

Sua pesquisa parte de uma notícia dada pela rádio sobre um caminhoneiro. Pode explicar como você utilizou esse fato para construir a tese?

Os caminhoneiros aparecem numa situação que eu acompanhei durante uma cobertura realizada pela Rádio Trânsito em 2012. O episódio narrado por essa emissora envolvia um motorista de caminhão. Minha tese parte desse episódio narrado pelo repórter que estava fazendo a cobertura do trânsito a partir do próprio trânsito, e o caminhoneiro era o personagem principal dessa narrativa. O que me chamou atenção foi a repercussão entre os ouvintes porque, em geral, o caminhoneiro é visto como um vilão que atrapalha e causa problemas. Ninguém crucificou o caminhoneiro. O que investiguei em minha pesquisa é como isso foi possível. Como que, por uma forma narrativa usada por um repórter, podemos ter um impacto diferente – e até contraditório – em relação àquilo que nós normalmente observamos nos processos de comunicação.

A partir desse caso você trabalha a questão da coesão social – levantada por Durkheim – utilizando os caminhoneiros para discutir uma possibilidade de dialogia. Qual análise que você faz da possibilidade de coesão social a partir desse tipo de narrativa?

A ideia de Durkheim presente no meu trabalho é a noção de solidariedade orgânica. Ao ir a campo, acompanhando o trabalho dos repórteres, consegui descobrir que o caminhoneiro faz parte de uma rede de relações com vários outros profissionais do trânsito. Um ponto em comum é justamente que o trânsito flua melhor, que esse espaço urbano continue organizado e opere dentro da normalidade. Tendo isso em vista, esses profissionais vão criando laços. Se o jornalista dá visibilidade a essa interação e às múltiplas perspectivas que existem, faz o que a professora Cremilda Medina chama de dialogia, que é essa possibilidade do jornalismo apresentar a pluralidade e a diversidade que existe na sociedade a partir da construção de narrativas que tenham esse compromisso.

Você acredita que as narrativas construídas pela mídia durante a cobertura da greve atenderam a pluralidade que existe entre os caminhoneiros?

É difícil dizer até que ponto podemos considerar que essa cobertura teve a habilidade em se aprofundar e aprender a pluralidade e diversidade que fazem parte desse contexto. Várias questões que acredito que seriam essenciais para compreender as disputas internas da categoria – como as divergências, a falta de um consenso da própria greve, do próprio movimento – que eu descobri em minha pesquisa, não estão nessa narrativa. É muito difícil afirmar que estamos diante de uma cobertura que foi realmente dialógica.

Caminhoneiros fazem protesto contra a alta no preço dos combustíveis na BR-040, próximo a Brasília. (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Quais são as questões e os detalhes que você conseguiu apurar em sua pesquisa que não foram vistos nessas narrativas da mídia?

Em vários momentos, principalmente quando a imprensa foi aos bloqueios tentar ouvir os manifestantes, várias reivindicações começaram a aparecer. Ali havia relatos de uma experiência de atuação profissional que, normalmente, a gente não vê. Eles tiveram algum espaço pra falar e expressar um pouco essas mazelas. Então esse foi um avanço a ser destacado. Mas o que eu penso que ainda é falho é a entrada um pouco mais aprofundada nesse universo. Os caminhoneiros são um grupo profissional bastante complexo. É muito complicado falar de um grupo tão diverso de uma forma monolítica, como aconteceu nessa cobertura. O que significa autônomo? Que representatividade é essa? E dentro dos autônomos, são todos iguais? Faltou mostrar um pouco da diversidade que existe no grupo porque ela impacta as reivindicações.

Apesar de tantas divergências, o que pode ter gerado união para a greve?

Não podemos ter tanta certeza assim de que eles conseguiram entrar nesse tipo de acordo. Será que realmente houve uma união da categoria ou tivemos alguns grupos que se sobressaíram, conseguiram se articular e impuseram sua perspectiva? O que me pareceu foi que havia o predomínio de um determinado núcleo: os autônomos. Justamente porque uma das principais reivindicações relacionava-se ao custo operacional do trabalho e isso é algo importante pra quem é dono do caminhão. Esse ponto em especial também atende a demanda dos empresários, que são, por sua vez, aqueles que empregam a outra parcela dos caminhoneiros. Ou seja, é um caldo bastante complexo e cheio de nuances. É cedo pra afirmar que há um consenso entre a classe. Precisamos de mais aprofundamento.

É possível avaliar se o paradigma do caminhoneiro foi reinterpretado em alguma medida após a greve?

É uma oportunidade singular para a imprensa apresentar a categoria profissional de uma forma diferente daquele padrão que comentamos. Por duas questões básicas. Primeiro porque o movimento todo escancara o quanto dependemos dos caminhoneiros, o quanto a sociedade brasileira precisa desses profissionais. Segundo porque a cobertura acaba mostrando um pouco da perspectiva dos motoristas, traz a visão e a voz de parte dos profissionais dessa categoria. Então, sim, a cobertura parece romper com o paradigma estabelecido, ao menos em partes. Mas precisamos aguardar para ter certeza de que essa mudança de perspectiva, ainda que limitada, permaneça.