Cortes em pesquisa são uma questão de disputa política, apontam especialistas

Professores debatem o corte de verbas e concordam que é preciso mudar o esquema de financiamento da ciência brasileira

 

Salomão e Naércio, da esquerda para a direita, comentam cortes na ciência

Por Laura Molinari e Bruno Carbinatto

Com as recentes ameaças de cortes em bolsas de fomento, anunciadas no começo do mês pela Capes e pelo CNPq, o modelo de financiamento à pesquisa no Brasil foi colocado à prova. Dependendo prioritariamente de investimento estatal, a busca por inovação e tecnologia acaba sendo comprometida em períodos de austeridade. Para debater a questão, o Jornal do Campus conversou com dois especialistas: Salomão Ximenes, professor de Políticas Públicas da UFABC, e Naercio Menezes, professor titular e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper e docente da FEA-USP.

Como você enxerga o financiamento de pesquisa no Brasil?

Naércio: O grosso desses gastos é feito pelo setor público. Em outros países, o setor privado gasta mais ou menos a mesma coisa que o público em pesquisa. Nós acabamos ficando muito dependentes do setor público. Primeiro, porque falta dinamismo no setor privado brasileiro, principalmente na indústria. Uma das coisas que faz as empresas investirem em tecnologia, por exemplo, é a concorrência. Mas o setor brasileiro foi construído para ser protegido. Isso explica, em partes, porque não há necessidade de inovação. Segundo, porque falta parceria entre o setor público e o setor privado. Porém, o setor privado não gosta da burocracia da Universidade, e o setor público acha que o mercado só quer auferir lucros. Por sua vez, o setor privado recebe muitos empréstimos e subsídios do governo. É preciso abrir mais a economia, deixar empresas entrarem, estimular a competição e parar de usar dinheiro público para subsidiar empresas que não façam muita inovação.

Salomão: Eu não vejo que seja necessária uma mudança legislativa para que exista uma maior integração entre o setor produtivo e o setor universitário. Nós temos legislação muito recente sobre inovação tecnológica que inclusive aprofunda essa possibilidade mediante um conjunto de mecanismos de incentivo, dando mais horas dos docentes para o trabalho de pesquisa junto com o setor produtivo. Mesmo em países em que o setor privado participa com alguma relevância no financiamento de pesquisa, com os EUA e Japão, a participação é de, no máximo, 20% do total investido. Setores fortes nos EUA, como o militar e aeroespacial, envolvem empresas privadas, mas o grosso do financiamento é público e estratégico.

Quais são as falhas nas políticas públicas no financiamento da pesquisa no Brasil?

Naércio: É difícil fazer pesquisa no Brasil, essa é a verdade. Primeiro pela falta de incentivos, segundo pela dificuldade de importação de produtos. Com relação ao financiamento, todo mundo tenta lutar pela sua parte do bolo. O MEC pede recursos para a educação, o Supremo quer aumento de salários. E, ao mesmo tempo, o governo fez a PEC do Teto, o que significa que os gastos não podem aumentar acima da inflação; é uma briga grande pelos recursos. Agora, é melhor não cortar em ciência, educação e saúde, e sim em subsídios para ruralistas, gastos com judiciário, subsídios para a Zona Franca de Manaus. Há um monte de gastos para cortar que são muito piores do que ciência, mas a política não deixa. Acho também que poderia aumentar a produtividade da ciência. Tem muitos gastos com pesquisadores que na verdade acabam não fazendo pesquisa. Muitas pessoas se acomodam no setor público. Além disso, as universidades públicas têm que ser mais flexíveis com os professores. Atualmente, só há um regulamento, não importa se o professor prefere dar aula ou pesquisar.

Salomão: O desenho geral das políticas públicas de financiamento da pesquisa, sobretudo no âmbito da da União, trabalha com uma perspectiva de financiamento desvinculado, ou seja, um montante de financiamento previsto anualmente no plano plurianual, sujeito a grandes variações. Um dos aprendizados desse período mais recente é pensar uma construção de um financiamento permanente, com garantia de recursos vinculados e estáveis. Assim como hoje 15% da receita líquida é aplicada em saúde, poderia haver um percentual da receita líquida da União para pesquisa. No horizonte mais imediato, o que preocupa mais são os efeitos da Emenda Constitucional 95, pelo seguinte motivo: [a despesa para pesquisa] é a mais sensível aos efeitos de uma medida como a EC 95. Porque, quando a emenda congela o montante máximo que podem ser gasto pela União, a tendência é que num curto espaço de tempo não exista orçamento para despesas que não sejam permanentes.

Qual a opinião de vocês sobre a EC 95, que estabelece um teto de gastos federais?

Naércio: É muito rigorosa a longo prazo, porque se você não puder aumentar os gastos com educação e saúde e o PIB começar a crescer, os gastos com essas áreas, em proporção do PIB, vai cair. E o Brasil não está em uma situação de deixá-los caírem. Então, apesar de ela ter o mérito, no curto prazo, de explicitar a briga pelo orçamento, os mais poderosos acabam vencendo, e esses gastos que vão para os mais poderosos, com o lobby no Congresso, geralmente não são os melhores a serem feitos. No fim, quem vai pagar por isso são as pessoas mais pobres. Então, eu acho que sim, ela tem uma vantagem: deixou clara a situação das contas públicas. No longo prazo, ela pode prejudicar setores prioritários, então, nesse sentido, ela tem que ser revista.

Salomão: Essa emenda é uma medida de força, que foi adotada no país em um momento de comoção nacional, depois da derrubada de uma presidenta, num momento de crise fiscal e política. Mas ela é absolutamente irracional do ponto de vista orçamentário porque coloca um teto de gastos horizontal, que não distingue o tipo de despesa do Estado, colocando sob o mesmo critério o investimento em educação, pesquisa e o gasto que se tem com as altas carreiras, principalmente os poderes Judiciário e Legislativo. E aqueles setores que são os mais importantes, porém com menos força política, acabam sendo prejudicados. Aí o que temos é uma política de austeridade burra. Na verdade, você retira a possibilidade de superar toda essa crise que a gente vive através do investimento em educação e pesquisa, uma saída da crise em médio e longo prazo, gerando desenvolvimento sustentável. Isso acaba no momento em que o desenvolvimento da pesquisa disputa diretamente com o gasto do poder Judiciário. Ou mesmo com os gastos previdenciários básicos, se tornando uma disputa cruel entre pesquisa e o pagamento de aposentadoria do trabalhador rural. O que é absolutamente irracional. Até porque a própria OCDE entende que pesquisa não deveria ser vista como mera despesa de custeio. Deveria ser despesa de investimento.