Financiamento para pesquisa no Brasil corre risco faz tempo

Um panorama dos cortes, as justificativas para diminuição de verba e os projetos ameaçados pelo “teto de gastos”

Pesquisadores estiveram presentes em protestos que tomaram a Avenida Paulista na tarde de 3 de agosto, um dia após o anúncio dos cortes

Por Bruno Carbinatto e Laura Molinari

No começo do mês de agosto, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) anunciou que, com o orçamento previsto para 2019, o pagamento de bolsas de fomento à pesquisa científica poderá ser interrompido. Em nota enviada ao Ministério da Educação, a diretoria da instituição afirmou que 93 mil pesquisadores podem ficar sem financiamento a partir de agosto do ano que vem, além de 105 mil alunos de pós-graduação do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), que também serão afetados. A notícia preocupou e mobilizou pesquisadores por todo país, mas, acima de tudo, serviu para mostrar como a produção científica no Brasil se sustenta sobre frágeis alicerces.

Além da Capes, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) também demonstrou preocupação quanto ao orçamento previsto para 2019. Em carta aberta, o órgão previu diminuição drástica no número de editais e de projetos para o próximo ano.

As duas instituições são as principais fomentadoras de inovação e pesquisa em nível federal, sendo a Capes ligada ao Ministério da Educação e o CNPq, ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Esses ministérios se comprometeram a negociar mais recursos no governo federal para que as bolsas não sejam suspensas, mas o futuro das pesquisas ainda permanece incerto.

A tendência de cortes não é nova: desde 2014, os reajustes são cada vez menores, justificados pela crise econômica (ver gráfico ao lado). No ano passado, o programa Ciência sem Fronteiras, de fomento ao intercâmbio internacional estudantil, foi quase totalmente desativado por falta de verba. O projeto contava com recursos tanto da Capes quanto do CNPq e, atualmente, tem vagas restritas para alunos de pós graduação.

Os cortes vão na contramão do recente crescimento na produção científica brasileira. Segundo relatório da Clarivate Analytics, entre 2011 e 2016, o Brasil foi o 13º país com maior publicação de pesquisas científicas, na frente de nações como Rússia, Suécia e Holanda.

As áreas de medicina clínica, agricultura e ciências biológicas foram as mais significativas em termos numéricos e de impacto internacional. Quase a totalidade dessas pesquisas foram e são feitas em universidades públicas, com disparidade regional clara: São Paulo é responsável por 40% de toda a produção científica no país.

De onde vem a crise? As ameaças recentes ao financiamento da pesquisa no Brasil têm relação direta com a medida de austeridade prevista pela Emenda Constitucional nº 95. Sancionada em 2016, a EC, conhecida como “PEC do Teto”, estipula o congelamento dos gastos públicos primários, apenas reajustados ano a ano a partir da inflação acumulada, para que as despesas do governo não cresçam mais do que a inflação.

Por isso os investimentos na área de ciência e tecnologia são colocados no mesmo barco de tantas outras despesas, como a previdência social, saúde e educação. Mas também dos repasses para o poder judiciário e legislativo, por exemplo.

Para Salomão Ximenes, professor de Políticas Públicas da UFABC, os setores de grande importância e de pequena força política acabam prejudicados. É o caso de ciência e tecnologia. “Essa emenda é absolutamente irracional do ponto de vista orçamentário, porque coloca um teto de gastos horizontal, que não distingue os tipos de despesa do Estado”, explica.

De acordo com Salomão, a área de pesquisa e desenvolvimento deveria ser vista como despesa de investimento, e não de custeio. Isso significa que ela precisa ganhar um percentual permanente de recursos vinculados à receita líquida da União, algo que a política de austeridade imposta pela EC 95 impede.

Hoje, a verba a ser repassada é definida em um plano plurianual que é passível de modificação, e o percentual investido na pesquisa não necessariamente acompanha uma parcela adequada da receita líquida. Para o professor, um custeio fixo poderia ser distribuído entre Capes, CNPq e outras iniciativas de pesquisa de forma mais lógica e menos afetada por disputas políticas.

Falta inovação Mas não é só isso. O fundo de financiamento da pesquisa brasileira é essencialmente público, normalmente vinculado a ministérios — como nos casos da Capes e do CNPq — ou a percentuais da receita arrecadada. A Fapesp, por exemplo, corresponde a uma fração do ICMS arrecadado no estado de São Paulo.

Naercio Menezes, professor titular e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper e docente da FEA-USP, considera que falta interesse maior do setor privado e industrial no incentivo à pesquisa e desenvolvimento. De acordo com ele, falta competitividade e inovação no Brasil, muito devido aos subsídios concedidos pelo governo e pela oligopolização. “O setor brasileiro foi construído para ser protegido. E isso explica, em partes, porque não há necessidade de inovação: eles não precisam inovar para competir e ganhar mercado”, afirma. 

Ele também ressalta que é frágil a relação entre as universidades e o setor produtivo, muito devido à burocratização da academia e à falta de flexibilidade das funções de professores universitários.

Quem sai perdendo? No vai e vem das relações políticas, quem é afetado diretamente? Os pesquisadores. Indiretamente, todo o Brasil. Felipe Jun Fuzita, por exemplo, é pesquisador bolsista do Instituto de Química da USP. Sua linha de análise é biologia molecular de artrópodes: “Estudo insetos que são pragas agrícolas. Analisamos a digestão deles para entender como combater esses animais quando eles causam problemas para o homem”, explica.

O projeto de Felipe é só um exemplo de pesquisas com potencial de benefício científico que corre risco de deixar de existir com o corte generalizado nas bolsas, o que o pesquisador considera catastrófico. “Como o Brasil não tem nenhuma regulamentação para carreira de cientista, são os pós-graduandos, vivendo de bolsa, que fazem a maior parte da pesquisa.”

Outra categoria que corre riscos, apesar de menos lembrada, é a de iniciação científica (IC). Realizada por estudantes de graduação, a IC é o primeiro contato com a pesquisa acadêmica e pode ser essencial na carreira: estudantes que passam pela IC têm 2,2 vezes mais chance de terminar o mestrado e 1,5 mais chance se doutorar, como aponta pesquisa do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).

Assim como projetos de pós-graduação, a Iniciação Científica pode contar com bolsas custeadas pelo Estado e estão na mira dos cortes do governo para 2019. Bianca Borges, estudante de Direito na USP, é bolsista dessa categoria, e também vê com preocupação o futuro da pesquisa no país: “O Brasil já sofre de um problema de fuga de cérebros muito grande, e a própria USP passa por esse processo, justamente por conta das questões de financiamento das Universidades”.

Ambos os pesquisadores estiveram presentes em protestos que tomaram a Avenida Paulista na tarde de 3 de agosto, um dia após o anúncio dos cortes. Além da mobilização massiva nas ruas, o assunto foi debatido nas redes sociais. No Twitter, a hashtag #existepesquisanobr ficou entre os mais comentados da plataforma por dias, com pesquisadores bolsistas de todo o Brasil contando sobre suas pesquisas e as desastrosas consequências de um corte em seus financiamentos.

E na USP? Em uma posição privilegiada do ponto de vista econômico, a Universidade de São Paulo é a maior produtora científica do Brasil; suas publicações somam mais que o dobro que a segunda colocada, a Unesp.

O financiamento da USP vem, principalmente, da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), que mantém uma certa estabilidade se comparada com agências de fomento federais.

Além disso, dado seu caráter internacional, a USP possui várias pesquisas financiadas por instituições de outros países, como é o caso da National Institutes of Health, dos Estados Unidos, que financiou 1676 projetos nos últimos oito anos, e da própria União Europeia, responsável por parcerias em 1223 pesquisas no mesmo período.

Mesmo assim, o perigo é grande. Juntas, as pesquisas da USP financiadas pela Capes e CNPq entre 2011 e 2018 somam um número maior que aquelas financiadas pela Fapesp (ver gráfico acima). 

Programa de bolsas peca em transparência ao público

Por Henrique Votto

No dia 15 de agosto foram finalizadas as inscrições dos estudantes para os projetos do Programa Unificado de Bolsas, o PUB. As bolsas, no valor de 400 reais mensais, terão vigência no período de 01 de setembro deste ano a 31 de agosto de 2019. As polêmicas, no entanto, ainda não têm data para terminar.

Desde que surgiu, em 2015, coordenado pela Pró-Reitoria de Graduação da Universidade de São Paulo, o PUB sofre com a diminuição de verbas e levanta várias dúvidas quanto à transparência dos critérios de distribuição dos benefícios.
Na Faculdade de Direito da USP, por exemplo, um caso de concentração de bolsas chamou a atenção. A professora Maria Paula Dallari Bucci, presidente da Comissão de Graduação da Sanfran, acumulou 42 bolsas (53% do total fornecido à unidade) entre seus dois projetos inscritos – “Grupo de Estudos em Teoria Geral do Estado” e “Grupo de Estudos em Teoria do Estado Brasileiro”. Foi a primeira vez que a docente solicitou bolsas no Edital do PUB para seus grupos, que funcionam há cerca de três anos.

A média de benefícios oferecidos à FD-USP em 2017 foi de 4,7 bolsas por projeto. Neste ano, sem os projetos de Dallari, este número cai para 3,9 por projeto. Atividades como o “Serviço de Assistência Jurídica (SAJU) Cárcere” e o “SAJU Tuíra”, inclusive, que foram renovados, tiveram as bolsas cortadas pela metade.

Na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP), o problema foi semelhante. O professor Luis Paulo de Carvalho Piassi, coordenador de Pós-Graduação em Estudos Culturais, foi o docente com maior arrecadação de bolsas para seus três projetos – 24 no total.

Ainda assim, a quantidade de bolsas concedidas para o “A.L.I.C.E no CCA” foi abaixo do mínimo solicitado. A entidade, que executa ações pedagógicas de recreação para crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos de idade, terá capacidade para exercer metade do trabalho desejado. “A gente só vai poder atender as crianças no período da tarde, o que já fazíamos no edital anterior”, explica Piassi.

A transparência dos processos, um dos principais motivos da centralização do programa na Pró-Reitoria de Graduação, não se concretizou na realidade. Muitos projetos são descartados sem justificativa, e bolsas são concedidas em quantidades abaixo do mínimo requerido pelos docentes responsáveis. Na EACH ainda, o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Sono (GIPSO) solicitou esclarecimentos à Pró-Reitoria pelo descarte de dois dos seus projetos. Não obtiveram resposta.

Uma conta que não fecha O Programa Unificado de Bolsas surgiu nos primeiros anos da gestão Zago, como parte do ideal de ampliação da Política de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE-USP). No discurso, a união das bolsas oferecidas aos alunos de graduação tinha como objetivo otimizar o investimento, para atender a demandas cada vez maiores dos estudantes, além de reduzir a burocracia, contribuindo para a transparência no processo de seleção.

O PUB ganhou força em 2016, quando o orçamento da Universidade liberou um total de R$ 28,8 milhões, o que seria suficiente para financiar 6 mil bolsas, conforme o próprio Edital 2016/2017. A promessa de expansão do programa era tão grande que, para 2017, a Reitoria previu um investimento de R$ 38 milhões. Porém, com a política de corte de gastos, esse valor caiu para a casa dos R$ 24 milhões, cortando mil bolsas em relação ao ano anterior.

A cada ano, o número real de bolsas homologadas pelo PUB gera contradições. Em 2017, menos de 4500 bolsas foram liberadas e utilizadas, apesar do orçamento disponível para 5000. O fato se repete neste ano: dos 5 mil benefícios previstos no orçamento de R$ 24 milhões, disposto no Edital do PUB 2018/2019, 202 ainda não foram aproveitados, gerando uma lacuna de quase R$ 1 milhão.
A Pró-Reitoria de Graduação da USP foi perguntada pelo JC a respeito dessas lacunas, mas não respondeu a tempo da publicação desta edição.