Primeira pós-doutora surda da USP conta trajetória

Emiliana Rosa relembra seus primeiros anos de surdez e fala sobre Libras e acessibilidade

“A mão em ação parece flutuar, ganha vida”. Em vídeo no YouTube, Emiliana declama uma versão adaptada para Libras de seu poema “Mãos”

Por Giovanna Simonetti

Emiliana Rosa é professora. No meio da nossa troca de textos, pergunto se ela ouviu algum preconceito quando dava aula no ensino médio. Recebo uma resposta curta: “Ouvir mesmo, nada”.

Por um segundo, esqueci que Emiliana é surda. Ainda embaraçada, leio a seguinte frase bem humorada: “Desculpe, não resisti”, acompanhada de risadas virtuais. Isso me fez entender melhor quem era minha personagem e até admitir que, sim, o mundo virtual pode ser eficiente.

A conversa por mensagens de texto desenvolveu-se aos poucos. Nos intervalos entre suas aulas e os afazeres diários, tentei ir ganhando a confiança de uma Emiliana que se vê como uma pessoa tímida, mas adora conversar.

Basta ela se sentir confortável para que a timidez do primeiro contato se desfaça. “Me sinto segura quando respeitam minha língua de sinais, quando me respeitam e compreendem quem sou”.

Durante uma semana, me aproximei. Em pausas para dormir, trabalhar, dar aula. Até mesmo após Emiliana ir ao pronto socorro, ainda estávamos conversando. Também houve intervalos, até mesmo para dar um tempo uma da outra.

 

Queria “ser doutora”

Nascida e criada no Rio de Janeiro, Emiliana formou-se em letras. A vida acadêmica sempre foi algo que a interessou, e confessa que desde pequena possuía a vontade de “ser doutora”.

Nômade voraz por conhecimento, morou e estudou em lugares como Salvador, Florianópolis e Porto Alegre. E completou o pós-doutorado em São Paulo. A primeira pós-doutora surda da USP tinha então 36 anos.

Sua pesquisa foi concluída recentemente. Até julho deste ano, Emiliana vinha de Porto Alegre a São Paulo para reuniões mensais com o orientador. Ela investigou a produção sinalizada de pessoas surdas com diagnósticos psiquiátricos.

De acordo com Emiliana, o atendimento ao surdo com distúrbio psiquiátrico é restrito e feito por pessoas que desconhecem Libras, a Língua Brasileira de Sinais – uma das duas línguas oficiais do Brasil, fato que poucos conhecem.


 

“Língua rica, leve”

Ela mora e trabalha em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde dá aulas de Libras.

Descubro que suasurdez não é de nascença. Começou aos onze anos, como resultado de uma meningite. Ela imediatamente parou de ouvir. Passaram-se mais onze anos para aprender Libras, aos 22.

O motivo da demora? Os médicos “aterrorizaram” seus pais, ao alegar que a língua a impossibilitaria de ter um “contato humano real”.  

Durante esses onzeanos de surdez, conversou apenas por leitura labial. Hoje, Libras representa sua liberdade. “É uma língua visual, onde tu se expressa pelas mãos, corpo, rosto… é uma língua rica, leve”.  

No livro de poesias que escreveu, Borboletas Poéticas, o título e a obra – divida em três fases, de acordo com seu amadurecimento ao longo de dez anos – expressam o processo de libertação e, consequentemente, sua autoaceitação.

Talvez a pausa mais longa em nossa conversa foi quando quis saber dos seus autores favoritos. Não conseguiu identificar. Apesar das certezas, quando o assunto é literatura, as dúvidas predominam.

 

Sobre acessibilidade, textão

Ao falar sobre Libras e acessibilidade, voltamos ao campo das certezas. O discurso de Emiliana é simples, direto ao ponto, além de entusiasmado. Um dos únicos textões que recebi mostrou isso:

“Coitado de quem se limita a pensar que é melhor do que o outro. Ouvintes não são melhores que surdos. O surdo se empodera com mais clareza e facilidade com outros surdos. Por isso nós lutamos por escolas bilíngues, com professores surdos e com sinalizadores, para que a criança tenha um modelo”.

Essas e outras afirmações me impressionaram durante nosso contato virtual. Permeando o diálogo, apareciam novos tons de sua personalidade, enquanto as primeiras impressões eram reforçadas, como na resposta final deste percurso:

“Tem gente que, em pleno 2018, te olha como ‘tadinha’. Eu não ouço? E daí? Tem dias em que isso é algo totalmente positivo”.