“Todos os museus do Brasil sofrem de negligência”, alerta Walter Neves

“Pai de Luzia”, Walter Neves fala sobre Museu Nacional e futuro da ciência no Brasil

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Walter Neves, bioantropólogo da USP e conhecido como “pai” de Luzia Foto: Bruno Carbinatto

Por Maria Carolina Soares

No dia 2 de setembro, ocorreu um incêndio de grandes proporções do Museu Nacional do Rio de Janeiro, dono do maior acervo de paleontologia e arqueologia no Brasil. Muitas peças de valor inestimável foram perdidas, mas uma das mais importantes, cujo estado ainda se desconhece, é o crânio de Luzia, o mais antigo fóssil humano encontrado no Brasil.

Descoberto por Annette Laming-Emperaire, a ex-residente de Lagoa Santa, MG, possui cerca de 11 mil anos e ganhou espaço na grande mídia no final dos anos 90 com os estudos do bioantropólogo da Universidade de São Paulo, Walter Neves.

Neves é especialista na técnica de craniometria, usada para analisar certos grupos humanos e sua distribuição pela Terra, mas também utiliza da antropologia para criar suas teorias de povoamento da América. Ele propôs que pelo menos dois grupos migratórios teriam adentrado ao continente americano pelo Estreito de Bering, que liga a América à Ásia.

O primeiro, chamado por ele de “o povo de Luzia”, teria feito esse caminho por volta de 14 mil anos atrás sem, no entanto, deixar descendentes. O segundo, que daria origem mais tarde às etnias indígenas do continente, chegou por aqui apenas há 12 mil anos, perpetuando sua linhagem.

Ao elaborar essa teoria ao lado do argentino Héctor Pucciarelli, Neves desafiou a ideia mais aceita, de que os primeiros americanos teriam sido os fósseis encontrados no sítio arqueológico de Clóvis, no estado do Novo México nos Estados Unidos, e revolucionou os estudos do povoamento da América.

Em entrevista ao Jornal do Campus, ele comenta seus estudos sobre Luzia e as causas e consequências do incêndio no Museu Nacional.

Como o senhor entrou em contato com o crânio da Luzia e o que o fez perceber o potencial dele?
Eu sabia da existência da Luzia desde quando eu comecei minha carreira no final dos anos 70, mas, por uma série de razões, eu não tive acesso às coleções do Museu Nacional até 1995. Assim que consegui essa permissão, a primeira coisa que eu estudei foi justamente o crânio da Luzia. O museu tem dezenas de outros esqueletos de Lagoa Santa (MG), Mas eu sabia que esse especificamente era muito importante porque na época ele era o esqueleto mais antigo encontrado no continente americano.

Quais seriam as continuidades da pesquisa brasileira nesse âmbito com incêndio no Museu?
O acervo do Museu, no que se refere ao povo de Luzia, ou seja, à população antiga de Lagoa Santa, é uma coleção muito significativa. Por exemplo: nos Estados Unidos, existem indivíduos por volta de dez e onze mil anos. Porém, são muito fragmentados, vindos de cada canto do país, então, não é possível fazer uma análise populacional. Lagoa Santa é o único lugar nas Américas onde você pode fazer uma análise populacional dos primeiros americanos e grande parte desse acervo estava no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Sobraram as coleções que estão no Museu de História Natural da UFMG e o acervo aqui das nossas próprias escavações, mas, das três instituições, quem mais tinha essas peças era o Museu Nacional. Isso quer dizer que a possibilidade de fazermos análises das populações diminui muito.

Existe alguma razão dessa análise poder ser feita em Lagoa Santa e não em outros lugares?
Lá foram encontrados dezenas de indivíduos vindos de uma pequena região, de mais ou menos 20 por 30 quilômetros. Então, isso nos permite ver o que chamamos de variabilidade intrapopulacional dos primeiros americanos. Os fósseis serem encontrados em Lagoa Santa é uma reunião de várias boas coincidências. Primeiro que é uma região que foi densamente ocupada. Segundo, que esse povo enterrava seus mortos sistematicamente em cavernas, o que torna mais fácil a escavação. Terceiro, que é uma região cárstica, ou seja, calcária e essa composição favorece a conservação dos ossos. Quando você multiplica essas três condições, fica muito difícil de encontrar outras regiões na América com os mesmos fatores.

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Reconstrução facial de Luzia, a partir do crânio original, no IB-USP Foto: Laura Molinari

Na opinião do senhor, qual é o panorama futuro da ciência no Brasil após essa tragédia?
Toda peça é única e evidentemente que, se novas escavações forem efetuadas em Lagoa Santa, é possível encontrar novos esqueletos, que é o caso da pesquisa do meu ex-aluno André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE). Juntando os resultados dos dois projetos, chegamos em uma faixa de 40 indivíduos. Essa talvez seja a segunda maior coleção vinda de um sítio específico em Lagoa Santa. Mas, mesmo com 10 anos de trabalho, nós não encontramos nenhum fóssil com mais de 10 mil anos. A maioria está entre 7,5 mil e 9,7 mil anos. Luzia era a única que fugia desse padrão e chegava nas margens de 11 mil anos. Nesse sentido, a Luzia era um exemplar único.

O senhor acha que os museus da USP sofrem da mesma negligência que o Museu Nacional sofria do governo?
Todos os museus do Brasil sofrem dessa mesma negligência. Evidentemente que a situação do Museu Nacional do Rio de Janeiro era um extremo. Ele simplesmente não tinha condições de funcionar. Mas todos os museus no Brasil, com poucas exceções, estão numa situação muito precária em termos de segurança do acervo que têm.

Por que o senhor acha que chegamos a essa situação?
São duas razões. A primeira é o descaso público com os museus em geral. A segunda é que, muitas vezes, o pesquisador olha só para o próprio umbigo. Ele está interessado em fazer a pesquisa de campo e analisar o que coletou. Porém, depois está “pouco se lixando” para como isso vai ser guardado e perenizado. No caso do Museu Nacional do Rio de Janeiro, existe um descaso de décadas por parte do poder público, inclusive da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que sempre tratou o museu a pão e água. Mas também há um certo corporativismo dos pesquisadores que falharam em mostrar a situação precaríssima em que o museu se encontrava. Quando a Luzia fez aquele estardalhaço todo na imprensa, no final dos anos 90, eu disse para os meus colegas que essa era a chance de eles aproveitarem a visibilidade e escancararem as portas para mostrar a situação real de um museu, mas preferiram não fazer isso.

Existe solução para o descaso?
Eu acho, primeiro, que são recursos financeiros e tem que ser um investimento constante de longo prazo. Em segundo lugar, vem a conscientização dos pesquisadores, que continuam fazendo pesquisas de campo e formando acervos sabendo que as suas respectivas instituições não têm como dar um mínimo de segurança para essas peças. E essa crítica que eu faço os meus colegas, eu fiz a mim mesmo. Eu decidi que eu só ia para campo escavar e tirar materiais arqueológicos e paleontológicos no dia em que eu tivesse condições ideais de guardar esse acervo.