Ainda mais conservadora, Câmara decidirá os rumos do país

Para pesquisadoras, sem coligações, nem Haddad nem Bolsonaro governarão democraticamente

 

Montagem: Amanda Péchy
Montagem: Amanda Péchy

Por Amanda Péchy

Os números principais são: 513 vagas com 52% de renovação; 141 políticos estreantes, 30 partidos. 436 homens, e 385 brancos; contam-se mais de 200 milionários. Esses dados contextualizam a nova Câmara, ainda mais conservadora, que decidirá o futuro do Brasil a partir de 2019, naquilo que é, por enquanto, um “presidencialismo de coalizão”.

O termo indica o sistema político em que as eleições para o Executivo e Legislativo não são vinculadas. O presidente eleito não governa sozinho, precisa obter apoio dos deputados. No Brasil, diante de um cenário fragmentado, o próximo presidente precisará negociar ainda mais com o Legislativo.

“Supondo a disposição de qualquer um dos dois para fazer uma coalizão, vão precisar de 11 a 14 partidos para compor a maioria no Legislativo. Isso torna o processo de coordenação muito complicado”, afirma Andréa Freitas, professora Departamento de Ciência Política da Unicamp e coordenadora do Núcleo de Estudos das Instituições Políticas e Eleições (NIPE-Cebrap).

Para ela, talvez Haddad tenha mais facilidade em criar alianças, pois está mais próximo do centro e o PT é um partido conhecido. Bolsonaro, na extrema-direita, repele o centro, pelo menos a princípio.

Coalizões, inclusive incoerentes
A diminuição de partidos grandes, predominando médios e pequenos, também dificulta a articulação política. Joyce Luz, doutoranda pelo Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora do NIPE, aponta que, além de trabalhosas, as coalizões serão ideologicamente incoerentes.

“A partir do momento que é preciso fazer uma coalizão com dois espectros ideológicos, o conteúdo e finalidade da política pública são comprometidos”. Não se trata de simples negociação de cargos, mas de responsabilidade em executar um projeto político.

Sem articulação com a Câmara, o presidente só pode atuar através de decretos e Medidas Provisórias (MP’s), cuja validade é de 120 dias. Tanto Haddad quanto Bolsonaro têm propostas que necessitam de aprovação de emendas constitucionais ou Projetos de Lei, que exigem aprovação da maioria do Legislativo.

A ressalva de Joyce é que, frente a uma Câmara fragmentada e polarizada, é preciso pensar quais propostas o presidente estará disposto a abrir mão. Será uma negociação marcada por muitas concessões.

Contudo, Bolsonaro vem afirmando que não pretende fazer coalizões nos moldes tradicionais. De acordo com Freitas, uma das possibilidades é procurar apoio em bancadas suprapartidárias, como Bancada da Bala, Evangélica, Ruralista. Ainda assim, não conseguiria mais da metade dos parlamentares. Outra opção seria formar um ministério tecnocrata, aos moldes de Fernando Collor de Mello.

Além do fato de que a experiência de Collor não foi bem sucedida, Freitas afirma que conversar com cada um dos parlamentares é impraticável. A governabilidade sem coalizões tradicionais é uma incógnita. “Estamos em um ambiente de extrema incerteza”, diz. “Qualquer que seja o presidente eleito, esse cenário certamente exige muita capacidade de coordenação.”

Renovação conservadora
Segundo dados do Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp, partidos à direita do espectro ideológico vêm ganhando força nas últimas eleições. Em 2014, somaram 48 deputados. Agora, o crescimento foi ainda maior: 63. Os partidos de centro encolheram de 137 para 75 deputados, e a esquerda manteve a representatividade, com 137 cadeiras.
Não é apenas um aumento da direita, mas da extrema-direita. Para a pesquisadora Joyce Luz, a perda de força do centro é prejudicial, por ser responsável pelo “balanço, o equilíbrio”.

Gráfico: Maria Clara Rossini

Isso pode ter ocorrido por falha na estratégia de campanha, que não investiu em redes sociais. Também é possível que MDB tenha perdido muitos votos por associação a Temer, reprovado por 82% da população em setembro, e o PSDB tenha lançado um candidato fraco.

A pesquisadora enfatiza, porém, o potencial de eleitores de centro que foram para a direita. “O medo do eleitorado brasileiro é a corrupção. Com o surgimento pela direita de um candidato aparentemente novo, fazendo um discurso contra corrupção, há transferência de voto”, analisa Joyce Luz.

Para Ana Flávia Canuto, doutoranda em Direito Constitucional pela USP e professora de Direito do Centro Universitário do Triângulo (UNITRI), o centro pecou em não renovar seus candidatos. Ficaram confinados na chamada “velha política”.
Muito da renovação na Câmara se deu pelos candidatos do PSL, impulsionados por Bolsonaro. Contudo, Canuto destaca a crise de representatividade. “Os eleitores, principalmente depois de escândalos de corrupção, não se identificam com os políticos.”

Políticos antipolíticos
A World Values Survey, rede global de cientistas sociais que pesquisam mudanças de valores e seu impacto na vida política e social, revelou em 2014 que 77% dos brasileiros não confia no Congresso Nacional.

Canuto indica que votos em novatos representam rejeição, e que as redes sociais facilitaram essas candidaturas. “Antes, era preciso mais conchavos para se candidatar e chegar em algum lugar.”

Grande parte dos estreantes eleitos não são da elite política tradicional. Ao contrário: discursam contra ela. “O que o eleitor brasileiro mais quer é que o problema na política se resolva”, declara Joyce Luz. “Por isso, vota em pessoas novas, que prometem resolver problemas através de elementos inéditos”. Para ela, porém, o índice de 52% de renovação da Câmara era inesperado.

A pesquisadora Andrea Freitas afirma que houve uma eleição antiestablishment, reduzindo drasticamente o número de lideranças no legislativo. “Políticos muito experientes não foram eleitos. Há menos pessoas que conhecem bem aquele jogo”. A novidade do congresso dificulta a coordenação política.

Barrados no baile
Jair Bolsonaro, líder nas pesquisas de intenção de voto para presidente teve, no total, 88 segundos de propaganda eleitoral na televisão no primeiro turno.

Para Canuto, isso é indício de que o pequeno tempo gratuito na televisão não terá mais tanta influência nas campanhas. Por outro lado, a restrição do fundo partidário é impactante. “O principal poder é o econômico, depois vem o político”, afirma. Tudo depende do comportamento das doações para a campanha e de propaganda em redes sociais.

A cláusula de barreira, lei de 1995, define que o partido deve ter ao menos 10% dos votos válidos na eleição. Os deputados que superaram 1,5% dos votos, e cujos partidos não atingiram o índice mínimo, poderão migrar para outros partidos – dos 35 registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 21 a superaram.

Dos 30 partidos que elegeram parlamentares, 9 não atingiram a cláusula de barreira. Tudo indica que, se houver migração, ela ocorrerá dentro do mesmo espectro ideológico.

“O que podemos esperar é que o PSL vire a maior bancada na câmara”, afirma Joyce Luz. Ela aponta que o partido de Jair Bolsonaro deve receber ao menos cinco migrações.

Dobrando à direita
Há um movimento mundial de crescimento da extrema-direita. Contudo, é difícil prever se representa uma tendência, ou qual é a estabilidade desse movimento. Bolsonaro é repetidamente comparado a Donald Trump, mas o Congresso estadunidense faz assídua oposição ao presidente e o comportamento de nosso futuro legislativo ainda é incerto.

Para Freitas, o cenário não está suficientemente claro. “O que me parece muito certo é que uma parte da sociedade brasileira aderiu a essa ideia da direita de forma muito forte. Inclusive, violenta”, diz, fazendo menção aos recentes ataques por questões de gênero e ideologia.

Parafraseando um dizer das ciências sociais, a pesquisadora brinca que eleições são uma maneira de trocar lideranças no governo, sem cortar cabeças. O problema é que essa função apaziguadora do processo eleitoral não está surtindo efeito, e é difícil pressupor que a situação se acalme após o fim das eleições. “Tenho a sensação que, na verdade, essa polarização só ficará mais aguda.”

Só após o fim da eleição será possível observar a reação do eleitorado polarizado – inclusive, se vai aceitar o resultado. Se o cenário se radicalizar, talvez a extrema-direita se fortaleça. Por outro lado, um governo Bolsonaro que tenha muitas dificuldades em aprovar medidas pode enfraquecer seus apoiadores.

Para Luz, é preciso observar se o eleitorado vai acompanhar os supostos novatos e suas ações. “Vai ser fundamental para determinar se vamos virar um país de extrema-direita”, diz. Para ela, é possível observar mudanças no modo como o indivíduo se posiciona. Os eleitores estão interessados. “Pode não gostar de política, mas compreendeu minimamente que a política afeta sua vida.”

Pessimismo no fim do túnel
Ao mesmo tempo em que a Câmara dos Deputados ficou mais conservadora, houve aumento da diversidade. Agora, 15% da Câmara é composta por mulheres. Foi eleita a primeira deputada indígena, Joenia Wapichana. E, através de candidaturas coletivas, foram eleitos nove ativistas que lutam por causas sociais, compondo a chamada Bancada Ativista.

Canuto atribui o fato ao forte desejo de mudança e procura por identificação, mas reluta em afirmar que esses avanços são tendência, pois o eleitorado não se ateve à ideologia dos partidos.

Freitas ressalta o fato de que parte dessa diversidade não vem de mecanismos naturais. Uma parcela das mulheres eleitas está ligada a movimentos sociais; outra, é parente de políticos tradicionais de grandes famílias. Além disso, as novas regras do financiamento de campanha obriga os partidos a promoverem mais mulheres.

De acordo com Luz, a diversidade é um dos efeitos positivos da polarização, devido ao sistema de representação proporcional. “Para um presidente ser eleito, precisa de metade de uma pizza, mais a azeitona. Para um deputado ser eleito, precisa só de uma fatia.”

Andando pra trás
Em um congresso majoritariamente conservador, é improvável que pautas sociais recebam apoio. “Talvez tenham que ficar lutando só para deter pautas regressistas”, lamenta Freitas.

Canuto, Freitas e Luz dizem-se, todas, pessimistas. Canuto se preocupa com a ciclicidade da história, e com o perigo de endurecimento do poder. Para Freitas, a composição geral do legislativo foi muito ruim, pois a falta de equilíbrio causa uma representação errônea da sociedade.

Luz, que deu a entrevista mais esperançosa, revelou que estava muito preocupada. “Tirando a roupa de cientista política, eu, Joyce, tenho o posicionamento de que estamos indo para um caminho bem obscuro.”