Maria Antônia, uma rua que esqueceu de si mesma

À esquerda, a Rua Maria Antônia durante a batalha de 1968; à direita, em 2018 / Créditos: Hiroto Yoshioka – Acervo Centro Universitário Maria Antônia / Pedro Vittorio

Apesar do esforço da USP em relembrar e expor a Batalha da Maria Antônia, seus vestígios e memórias praticamente sumiram da rua

Por Pedro Vittorio

Nos dias 2 e 3 de outubro, a Batalha da Maria Antônia completou 50 anos. O confronto foi a materialização de uma luta ideológica entre estudantes da USP e do Mackenzie, quando as universidades tinham sedes uma em frente à outra. Deixou um estudante, José Guimarães, morto, e dezenas de outros feridos. Certamente a Batalha marcou a história da USP. Mas para descobrir sua influência nas pessoas comuns da rua, saí conversando por aí, de porta em porta.

Às 11h da manhã, saio em busca dos estabelecimentos mais antigos. Pergunto aqui e ali, até chegar no Bar do Zé. “O bar já foi bem famoso”, diz o gerente de um restaurante próximo: “o Zé Dirceu vivia por lá.” Vou andando até a esquina da rua Maria Antônia com a Doutor Vila Nova, estranhando que só havia a placa desta segunda rua. Alguma coisa estava errada.

Seu Alberto, que trabalha no Bar do Zé, me recebe um pouco fechado. Respostas curtas, entre copos lavados e pães esquentados na chapa. Afirma que trabalha no bar há “40 e tantos anos”, mas apenas ouviu falar da Batalha. Após algumas perguntas, afirma que será difícil conseguir coletar histórias, pois quase todos os estabelecimentos antigos foram vendidos: “Tinha uma sapataria…”, inicia, pensativo. Mas logo se lembra: foi vendida também. E os que sobraram, incluindo o próprio bar, mudam de dono frequentemente.

Então reparo numa parede decorativa do bar. Ao lado de uma coleção de cervejas Brahma e um quadro, está pendurado um memorando do Bar do Zé. Diz que foi fundado há mais de 100 anos e que Chico Buarque tocou seus primeiros acordes ali. Há um número de telefone anotado, de apenas 7 dígitos. Reserva uma pequena frase para falar da Batalha: “Nosso boteco de esquina assistiu de camarote às famosas e trágicas manifestações estudantis de 1968.”

Estou quase saindo, quando uma mulher comenta que existe um segundo Bar do Zé, derivado do primeiro, dentro do Mackenzie. Vou até o local, em busca de algum funcionário antigo. Quem sabe o próprio Zé.

Os “Seus Zés”

Ao chegar no Mackenzie, sou recebido com certa animação pelos funcionários. O que soa estranho, pois me sinto intruso. Pergunto sobre o Seu Zé: “Ele está logo ali”.

Dou a volta e espero ele terminar de receber alguns produtos: farinha de trigo, óleo, sal, farinha de mandioca, carne seca, Velho Barreiro (uma garrafa), feijão e um saco de lixo preto volumoso que não imagino o que possa ter. Seu Zé usa avental e dá bronca no entregador: “Olha a sujeira que você fez… Caldo de galinha não veio?”, pergunta, e checa se outras coisas faltaram.

Finalmente me apresento: “Prazer, Pedro, Jornal do Campus, etc… Seu Zé, você esteve presente na Batalha da Maria Antônia?”. Ele responde que talvez eu tenha abordado a pessoa errada. Ele tem o mesmo nome do dono, mas não é o fundador do bar. Antes que eu pudesse desanimar, me olha e dita um número telefônico. “Liga pra ele”, diz, “fala que é sobre a Maria Antônia. Se marcar, ele vem até aqui. Ele gosta bastante daqui.”

Ligo e então José Rodrigues me atende, com a voz cansada de quem já viveu muito e bem. Tem sotaque português e fala com carinho sobre o bar que fundou: “Era cheio da garotada das faculdades ao redor. Vinham, cantavam, bebiam, ficavam por lá.”

Ele lembra da Batalha, com detalhes: “No dia eu trabalharia de tarde, mas um colega não pôde vir. Então cheguei cedo, para cobri-lo.” Por volta das dez da manhã, viu um aglomerado de estudantes subindo a rua Doutor Vila Nova e se reunindo na esquina.

“E aí começou a briga. USP e Mackenzie, ficaram até de noite. E voltaram no dia seguinte. Havia paus, pedras, bombas voando. Então um aluno morreu, todos ficaram muito abalados”. Ele também lembra dos comércios ao redor, que foram procurados como esconderijos. Concluiu dizendo que, depois da mudança dos cursos da USP para o Butantã, toda a agitação parou.

Créditos: Hiroto Yoshioka – Acervo Centro Universitário Maria Antônia / Pedro Vittorio

Os edifícios

Com a ausência de mais estabelecimentos antigos, meu próximo objetivo é o prédio em frente ao Centro Universitário Maria Antônia (CEUMA).

Construído em 1956, o Edifício Buriti tem uma fachada ampla e imponente. Sou atendido pelo porteiro Aureliano, e explico a Batalha da Maria Antônia. Ele nunca tinha ouvido falar. Pergunto sobre moradores antigos, ele faz uma cara de lamento e anuncia: dona Célia, a última que lembrava, morreu aos 94 anos, há 2 meses. “Hoje em dia o prédio virou moradia de estudantes.”

Então percebo: o que parecia uma extensão do Edifício Buriti, é um prédio à parte. Seu nome é Maria Antonieta. Foi dali que Hiroto Yoshioka tirou fotos da batalha; algumas compõem a exposição “Re Vou Ver”, atualmente no CEUMA.

Edilson, um dos porteiros do prédio Maria Antonieta, afirma não haver gente antiga por lá. A construção virou complexo estudantil. Mas existia algo a se fazer ali: tirar uma foto do mesmo ângulo que Hiroto havia tirado em 1968, para ilustrar essa matéria. Vou interfonando para os moradores.

Finalmente alguém me atende, Natanael, morador do terceiro andar e estudante de engenharia no Mackenzie. Ele avisa: provavelmente a foto foi tirada do quarto andar. Tudo bem, afinal três está na média e o quarto andar não tinha ninguém. Natanael me auxilia, dizendo que a irmã dele é fotógrafa profissional na Europa. Após muitas tentativas, gambiarra com cadeira e pau de selfie, além de lições do estudante sobre perspectiva, conseguimos. Era hora de tirar outra foto, da rua.

O centro comercial

Ao andar pela rua Maria Antônia, uma coisa fica clara: quase nada é antigo. Estou a alguns passos de uma Kalunga, um Carrefour Express. Para alimentação, vejo Ragazzo, Soho’s Place e Sukiya. Uma academia BLUE Fit, uma loja de sapatos Wishin’.

Acho, enfim, o ponto de onde Hiroto tirou a foto: seria uma árvore do lado esquerdo, mas lembro do que o aluno do Mackenzie comentou: “Sexta passada teve um vendaval, e arrancou ela fora.” É como sentir o calor de um resto de fogueira.

A foto de 1968 estava cheia de pessoas. A de agora está dividida entre pessoas e carros. Na porta do CEUMA, jovens se sentam e ouvem música, bebem, fumam maconha. Tenho a impressão de ver alguém esfregando os dentes com o indicador.

É aí que a ficha cai: a comunidade da rua não se perdeu, apenas mudou. Agora é majoritariamente mackenzista. Quem ali poderia manter viva a memória da Batalha? Eles foram absorvidos pela história, como os vilões. A narrativa talvez interesse muito mais aos uspianos. É a história que se passa em exposições, gincanas de calouros, documentários.

Lembro-me de um trecho de Belchior que Elis cantou: “Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa…”

Era isso que a USP tinha na rua. Não um lugar, mas as vidas daquele lugar. Em 1968, depois que a Batalha deixou o prédio destruído, nossos alunos migraram para o Butantã. E as raízes arrancadas da Maria Antônia foram com eles.