S.O.S. Letras: graduação pede socorro

O curso tem problemas fundamentais, da falta de professores a infraestrutura insuficiente

Por Giovanna Simonetti e Ana Carolina Cipriano

No dia 19 de setembro, o Centro Acadêmico de Estudos Linguísticos e Literários “Oswald de Andrade” (CAELL USP) divulgou no site dos Jornalistas Livres uma carta aberta intitulada “Um pedido de socorro do maior curso de Letras da América Latina”. O texto, que apontou diversos problemas do curso, era destinado ao reitor da USP, Vahan Agopyan, e o governador de São Paulo, Márcio França. Nele, os alunos expõem situações precárias e reivindicam melhorias.

Além da infraestrutura deficitária, um dos maiores problemas de Letras identificado na carta é em relação ao corpo docente: faltam professores, sejam efetivos ou temporários. Com mais 5 mil alunos de graduação e pós inscritos e 849 vagas de ingresso para 2019, o curso de Letras é um dos maiores da Universidade.

Porém, enfrenta um período complicado, resultado de dificuldades acumuladas  e negligenciadas faz tempo. O Jornal do Campus procurou detalhes, e encontrou diversas histórias.

Jaime Ginzburg, professor que ministra a aula de Literatura Brasileira II, a mais lotada do semestre / Crédito: Giovanna Simonetti

Salas com mais de 100 alunos

Em sua carta, o CAELL cita as disciplinas de Literatura Brasileira II e IV como sendo uma das mais problemáticas do semestre. Ambas são obrigatórias, mas questões burocráticas impediram seu oferecimento como esperado.

A contratação de dois professores temporários para o período noturno estava prevista para o início deste semestre, porém não se concretizaram sob a justificativa de erro no sistema. Jaime Ginzburg, um dos docentes das disciplinas, explica que houve um planejamento de três professores por período, cada um com duas turmas, que só poderia ser posto em prática com a vinda dos docentes temporários. Contudo, com o aviso tardio de que eles não viriam, em julho, os planos tiveram que ser reavaliados: só poderiam existir oito turmas, ao invés de doze, o que aumentou o número de alunos em cada uma delas.

Nas primeiras semanas, Jaime tinha mais de cem alunos matriculados na disciplina de Literatura Brasileira II. “Na primeira aula, estávamos em uma sala de 60 vagas. Então dei aula com pessoas no chão, outras que entravam e não conseguiam espaço”, comenta. Hoje, a disciplina é ministrada na sala 102, a maior do prédio, usada no limite.

Pelo déficit de professores à noite, uma das professoras da manhã teve que ser realocada no noturno. Os alunos também foram incentivados pelo departamento a mudar de turma e período, e aqueles que não estavam no semestre ideal, que não pedissem requerimento para cursá-la.

Após o remanejamento, Jaime tem duas turmas, com 88 e 81 alunos matriculados. “O ideal, de fato, seria que a gente tivesse a possibilidade de ter 30 alunos, no máximo”. O professor confessa incertezas sobre o futuro: “Nossa maior preocupação é que isso se repita ano que vem. O reitor já manifestou que não vai abrir novos Claros (reposição automática de aposentados), então estamos com o mesmo número de professores para atender esse número de turmas. Não temos condição de evitar. Não tem previsão de contratação de professor”.

Infraestrutura debilitada

A disciplina de Literatura Brasileira II não é a única sem sala de tamanho suficiente para comportar a turma. Existem relatos de alunos que precisam pegar carteiras em outras salas, assistir do lado de fora, ou mesmo ter que ir embora. Também houve situações em que o professor interrompeu a aula para procurar por salas disponíveis, além de não principalmente optativas  serem dadas no prédio de Ciências Sociais.

A explicação das secretarias é que a designação das salas para cada disciplina é feita de acordo com o número de vagas ofertadas. Ou seja, desconsideram-se os requerimentos.

Sobre as salas lotadas, “é insalubre, contraproducente, todo mundo amontoado. Não é frescura. Aguentar horas sentados sem praticamente poder se mexer, com um calor miserável, torna a aprendizagem bem mais difícil”, afirma um aluno do primeiro ano.

Além da distribuição da salas, o prédio da Letras apresenta problemas estruturais: ventiladores não funcionam, janelas não abrem, impressoras têm defeito, o mobiliário é antigo. Ocorrem situações mais graves, como a queda de um pedaço do teto no espaço de convivência, em 2017. Recentemente, dia 27 de setembro, o abastecimento de água foi interrompido pelo baixo nível nas caixas e as aulas do período noturno na Letras, juntamente com as de Ciências Sociais e Filosofia, foram canceladas.

 

Alemão: sem professores

Pela redução drástica no número de professores ativos, o curso de alemão é um dos mais prejudicados. Em 2013, a área contava com 14 docentes efetivos. Até o final de 2018, serão apenas seis, explica José Simões, professor e ex-coordenador do Departamento de Letras Modernas. Destes seis, cinco dão aula ― José está de licença-prêmio para que possa realizar uma pesquisa, uma de suas obrigações como docente.

Em cinco anos, o curso perdeu cerca de dois terços dos professores. O motivo? Muitas aposentadorias não foram repostas. Desde 2013, os Claros não foram preenchidos, como era de costume. Dessa forma, os professores restantes estão sobrecarregados: alguns, no semestre passado, tinham carga de aula de 10 a 12 horas quando o máximo desejável são oito.

Para dar conta da graduação, da pós e das publicações dos próprios docentes e manter a qualidade do curso —  o alemão teve que diminuir significativamente a quantidade de disciplinas optativas neste semestre.

O número reduzido de disciplinas aumenta as turmas. Em situações regulares, o curso conseguia manter 20 alunos por sala. “Agora temos 50 com um único professor. Você já imaginou uma aula de língua estrangeira com 50 pessoas na classe? É muito complicado”, afirma José.

Juliana Tomasello, aluna do terceiro ano, escolheu o alemão como habilitação. “Os poucos professores estão pegando várias aulas para que pelo menos as obrigatórias sejam oferecidas. Uma das professoras já disse em sala de aula que a prioridade deles são as obrigatórias da graduação, então em alguns semestres não há muitas optativas”.

A aluna começou a vivenciar esse problema ano passado, quando iniciou a habilitação. Na Letras, o primeiro ano é o ciclo básico, em que são oferecidas várias turmas das quatro disciplinas básicas. Mesmo assim, Juliana conta que desde quando entrou na universidade, em 2016, ouve falar desses problemas.

Crédito: Giovanna Simonetti

Burocracia atrapalha solução do problema

O curso de Alemão pôde publicar um edital para contratação de três professores temporários para começar no início do ano, mas a longa burocracia atrasou o processo e a admissão ocorreu somente no final de junho, com o semestre acabando. Existem outros relatos de professores temporários que deixaram as disciplinas no meio do semestre, por término de contrato.

Na habilitação em Espanhol, professor de disciplina básica deixou o curso após um pouco mais de dois meses de aula e teve que ser substituído. Uma turma da habilitação de japonês também teve problemas: ficou dois meses sem aula no semestre passado, esperando um docente temporário.

O processo de contratação é demorado e passa por inúmeras instâncias administrativas. “Desde 2013, nós estamos fazendo solicitações de contratação de professores. Todas elas são datadas e até hoje nós não recebemos nenhuma resposta efetiva da Reitoria, uma resposta oficial. Esta máquina emperrada burocrática protege os órgãos superiores, e isso não é só a Reitoria”, afirma José Simões.

De acordo com ele, a comunicação com instâncias administrativas é muito burocrática. “Eles só se comunicam na hierarquia direta, nunca se pula uma instância. Eu não posso passar o pedido de Claro direto para o Pró Reitor. E no meio do caminho, tem um pouco de boa ou má vontade de alguém que também faz a informação chegar”, acrescenta.

Além de insuficientes, os contratos com docentes temporários são, no mínimo, desestimulantes. Segundo José, os professores provisórios recebem em torno de seis vezes menos do que os titulares. “Os temporários do alemão recebem um valor irrisório de R$ 1.800 por mês e eles dão o mesmo número de aulas de graduação que nós, que é uma carga horária relativamente alta”, relata.

Conforme indica a tabela de vencimentos do Departamento de Recursos Humanos da USP, o valor exato do salário de um docente temporário é de R$1.877,43, equivalente  ao Regime de Turno Parcial de 12 horas, para quem tem título de doutor.

Além da baixa remuneração, esses profissionais não são obrigados a desenvolver projetos de pesquisa na graduação e na pós, e nem projetos de extensão. “Dessa forma, a pesquisa acadêmica, que deveria ser um dos pilares maiores da universidade, fica comprometida com a precarização na contratação de professores”, analisa o professor do Alemão.

Problemas não são isolados

Juliana Camargo, professora do Armênio, atesta que a situação vem piorando ao longo dos anos / Crédito: Giovanna Simonetti

Apesar de algumas habilitações sofrerem mais com a falta de professores, o problema é generalizado na Letras. Em 2016, o coordenador da habilitação em Coreano teve que optar entre graduar uma turma ou abrir vagas para uma nova sala.

O Armênio enfrenta uma situação parecida. Juliana Camargo é professora temporária de língua armênia desde 2014. Ela ingressou na Letras quando uma das professoras titulares entrou em licença maternidade e emendou uma licença-prêmio.

A professora, que também estudou na USP, considera que a situação da Letras vem piorando ao longo dos anos, em grande parte pela aposentadoria de muitos professores, principalmente a partir do ano passado. O inglês foi uma das habilitações que mais teve docentes aposentados e não repôs totalmente seu quadro de professores.

Embora exista a possibilidade de prorrogar o tempo de contrato temporário por mais um ano, ao término desse período voltam a faltar professores, caso não sejam abertas vagas para titulares. “Se não abrir um concurso, é sempre muito dificultoso e isso faz com que tenha perda de qualidade e de rendimento”, avalia a professora.

No Armênio, o perfil dos alunos é voltado para a Linguística e a Tradução e, ao mesmo tempo, a pesquisa, já que existem poucos materiais traduzidos. Além disso, são alunos que realmente tem interesse pela língua, justamente por ser tão complexa e distante do Português.

A professora Juliana Camargo considera que existe uma grande perda nos casos em que não são oferecidas turmas, como ocorreu no Coreano. “A partir do momento que não se oferece a habilitação, tem uma perda de qualidade e de pesquisa. Quando tem que se fazer escolhas, naquele ano poderia ter uma leva de graduandos na sua habilitação, mas você perdeu a oportunidade. Você não sabe como seria aquele ano”.

Na pós, fusão de programas

A pós graduação também enfrenta problemas. Neste ano, os programas de Estudos da Tradução, Língua, Literatura e Cultura Russa e Estudos Judaicos e Árabes  todos descredenciados pela Capes  integraram-se ao programa de Estudos Linguísticos e Tradutológicos em Francês. Juntos, passarão a se chamar Programa de Letras Estrangeiras e Tradução LETRA.

Os três programas, em nível de doutorado, foram cortados por não atingirem a nota necessária na Capes. A nota foi rebaixada por alegarem falta de produtividade e não atendimento do número mínimo de professores 12.

Para Priscila Marques, do pós doutorado em Russo, esse número é prejudicial e arbitrário. “Quando a Capes inventa um número, ela está dizendo que áreas pequenas não existem, não vão existir”, diz.

“A verdade é que todos esses programas estavam em situações vulneráveis, e é por isso que eles se juntaram. A gente precisava fazer isso. Mas a Capes poderia ter evitado o constrangimento de ter descredenciado o único programa de pós graduação do país e da América Latina de formação de russo”,  acrescenta Priscila.

Resposta da diretoria

No último dia 27 de setembro, a Comissão de Graduação da FFLCH convocou uma reunião com todos os chefes de departamentos do curso de Letras para discutir a situação do quadro de docentes. A assessoria informou que, decidido por unanimidade, ainda esse ano serão discutidas maneiras de reestruturar o curso.

Foi informado que, apesar da não reposição do quadro docente, “todo o conteúdo programático das 16 habilitações do curso de Letras tem sido ministrado regularmente”. A resposta vai em direção oposta àquilo que foi ouvido e visto pelo JC através de vivências e depoimentos de professores e alunos. Não considerou-se a sobrecarga de alguns docentes, como apurado. Além disso, a diretoria diz não ter conhecimento de professores que tiveram os contratos finalizados na metade do semestre.

A diretoria da FFLCH não tem autonomia para distribuição de verbas entre cursos e departamentos. Esse papel é da Reitoria e Pró Reitoria de Graduação. Quanto à infraestrutura, a assessoria informou que estão sendo realizadas algumas reformas nos prédios, a começar pelos de História e Geografia, mas que as obras não são de responsabilidade direta da faculdade. A meta da gestão atual é revitalizar todos os espaços da faculdade.

Procurada pelo JC, a Pró Reitoria de Graduação da USP não respondeu antes do fechamento desta edição.