Vestibulares abrem brechas para diversidade nas obras obrigatórias

Fuvest e Unicamp aproximam livros e discos da realidade do vestibulando e tornam a seleção mais democrática

Por Letícia Vieira

Desde a separação, em 2016, das listas de obras obrigatórias da Fuvest e da Unicamp, elas estão se tornando mais diversas: deixaram de ser restritas ao eixo Brasil-Portugal, passaram a apostar em gêneros diferentes da prosa e há um movimento de aproximação do conteúdo exigido em relação à realidade do estudante, tendência que deve crescer.

Neste ano, a Unicamp anunciou a exigência de um disco como referência obrigatória. “Sobrevivendo ao Inferno”, do Racionais MC’s, que será lançado em formato de livro, será obrigatório no vestibular de 2020.

As mudanças na lista de obras da Unicamp começaram em 2016, com entrada de literatura africana e dos gêneros conto, poesia e teatro, além do romance.

Enquanto isso, a Fuvest vem realizando mudanças tímidas. Manteve a lista unificada de 2015 para 2016, mas adotou “Mayombe”, do angolano Pepetela, para 2017 e “Minha Vida de Menina”, biografia em forma de diário, de Helena Morley, para o ano seguinte.

Segundo André Valente, professor de literatura do Cursinho da Poli, a Fuvest prioriza a manutenção do cânone, enquanto a Unicamp é mais abrangente. Como exemplos dessa postura inovadora estão “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, e o próprio “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MCs.

Para o professor, a obra “Quarto de Despejo”: “contribui  para o debate sobre lugar de fala, sobre dar voz a uma mulher, mãe solo, com baixa escolaridade, moradora de uma favela, considerando válida a sua visão sobre o mundo”.

Sobre o disco de rap, o professor afirma que “depois que Bob Dylan recebeu prêmio Nobel de Literatura, foi uma ótima ideia escolher um álbum musical e posicionar o rap como um gênero poético relevante para a literatura de língua portuguesa”.

Desconstruir o elitismo

A adoção do disco também foi bem recebida pelos alunos Letícia Marcelino e Lucas Duarte. Eles estão no quarto ano de cursinho e pretendem prestar medicina na Fuvest e na Unicamp.

De acordo com Letícia, a adoção do disco “é uma forma de incluir outras manifestações artísticas, de desconstruir uma ideia elitista do que se entende por cultura brasileira”.

Lucas também acredita que a mudança é um movimento de inclusão. “É uma forma de democratizar a lista, inserindo a realidade de boa parte dos candidatos do vestibular”. Além disso, ele ainda aponta que a obra é importante para expandir o conhecimento de vestibulandos de classes mais altas, não familiarizados com a vida na periferia.

Para ambos, a diversidade da lista da Unicamp exige mais dos alunos. Ela é considerada um desafio, pois requer o exercício de compreensão de narrativas em vários formatos.

Professores

Essa falta de proximidade dos alunos com a variedade de gêneros é um entrave também percebido pelos professores.

Heric José Palos, coordenador de Português do Etapa, aponta o entendimento das obras para além do enredo como a principal dificuldade dos alunos. Segundo o professor, é comum a falta de familiaridade com a leitura e seus mecanismos.

Ele explica que os examinadores pressupõem a leitura integral das obras e, portanto, tendem a aplicar questões que envolvem não só fragmentos do texto, mas também detalhes de personagens, tempo, espaço e contexto social.

O distanciamento da maioria das obras em relação ao cotidiano dos alunos é, para André Valente, outro empecilho: “são obras antigas que, na visão do estudante, não dizem respeito a sua realidade. Então, fica a cargo de nós, professores, ensinar esse tipo de leitura”.

A diversificação das listas contribui, segundo ele, para a criação de relações mais variadas entre as obras e os conteúdos do Ensino Médio. André julga fundamental cobrar do estudante diversos repertórios, como o sociocultural, científico, político e filosófico.