Acervo do IEB guarda riqueza da produção de Milton Santos

Por Thais Navarro

“Milton Santos escrevia como que para fazer sentir a oralidade”. Com estas palavras, a pesquisadora e linguista Luciana Salazar descreve o processo de escrita de um dos mais consagrados geógrafos brasileiros — nacional e internacionalmente.

Um enorme acervo de sua produção pode ser acessada por qualquer pessoa no campus da Cidade Universitária no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Grande parte do material ainda está em catalogação. Luciana faz parte do projeto Pesquisador Voluntário, uma iniciativa na qual o pesquisador pode mergulhar em materiais novos e fazer suas próprias descobertas, colaborando, assim, com a catalogação dos objetos.

Milton Santos viajou para diversos países durante seu exílio na Ditadura e teve contato com vasta rede internacional de cientistas. Nessa trajetória, absorveu uma bibliografia atípica, sempre com grande preocupação em pensar o Brasil, propondo novas teorias pensadas sob condições brasileiras.

“A reflexão sobre o Brasil estava impedida neste período militar. Ele leu vários colegas contemporâneos por vários lugares onde passou. Formou um conjunto inesperado para as tradições disciplinares e uma reflexão mais teórica sobre a própria geografia.”. Como descreve Luciana, uma das principais teorias que Milton propôs e a partir da qual conduziu estudos é a da formação socioespacial.

A contribuição de Milton Santos também para os movimentos sociais é um dos pontos altos que Luciana destaca, sobretudo devido ao livro Por Uma Outra Globalização: Do pensamento único à consciência universal”, do ano 2000 “Sobretudo depois deste livro, ele passa a ser muito lido por movimentos. É um convite ao não geógrafo a pensar o mundo contemporâneo a partir da lógica teórica que ele compôs”.

A obra é lida por pessoas comuns e, academicamente, é bibliografia obrigatória em disciplinas como História, Sociologia, chegando a pessoas do teatro, destaca Luciana.

Senso de posteridade

O acervo de Milton Santos é riquíssimo, há até guardanapos com recados de alunos. O geógrafo, muito provavelmente, sabia que seu material bruto poderia ser estudado no futuro para entender não só suas teorias, mas como chegou nelas. “O material dele já veio para nós com uma lógica muito organizada”, diz a pesquisadora.

Entre os materiais dos mais diversos formatos guardados no IEB, grande parte dos documentos veio da residência de Milton Santos em São Paulo, por sua vez adquiridos na época em que o geógrafo morou na Bahia, além do que havia no seu laboratório e sala ocupados na USP.

Uma das peculiaridades sobre a qual Luciana chama a atenção é o costume de Milton Santos gravar suas aulas e palestras em fita cassete para, depois, transformar suas reflexões em texto, com pequenos ajustes. Era, como Luciana descreve, um verdadeiro projeto intelectual.

“Ouvindo estas fitas, tive a sensação de que fiz o curso de pós-graduação que ele lecionou”, aponta Luciana. Entre outros objetos interessantes, estão cartas — algumas delas timbradas com símbolos de hotéis —, bilhetes e telegramas de políticos. “Isto que é o emocionante de explorar um fundo documental: pode-se encontrar o aspecto público e institucional do intelectual e como eles convivem”.

Ditando um clássico

Outro detalhe curioso sobre a gênese editorial de algumas produções do geógrafo diz respeito ao método do ditado. Milton Santos fez isso, por exemplo, para produzir um de seus livros mais conhecidos, A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, de 1996.

Olhando para uma janela, o geógrafo ditava suas reflexões para uma pessoa que as escrevia e gravava. Depois, o texto era digitado, impresso, e o autor fazia um recorte manual no mesmo.

Usando essas e outras metodologias, Milton Santos abalou os paradigmas científicos de sua área, sendo laureado, em 1994, com o prêmio Vautrin Lud, considerado o Nobel da geografia.