Sem deixar ninguém para trás

Uma das grandes questões com a ascensão de Jair Bolsonaro e tudo o que ele representa ao poder é em relação ao nosso ofício: como cobrir absurdos? Como cobrir declarações preconceituosas – quando não criminosas? Como lidar com um líder autocrático que estimula o descrédito da imprensa e de outras instituições, incluindo seu próprio governo, e defende que a única informação confiável é a que ele mesmo produz?

A ascensão do conservadorismo que tanto preocupa vocês – e pautou o editorial mais pessimista que eu li nessas últimas edições do JC – é, de fato, uma prova de fogo para quem trabalha com informação. Já vivemos em momentos polarizados antes, já assistimos a governos com pretensões ditatoriais usarem técnicas de comunicação para manipularem o público, mas não sabemos bem o que fazer quando isso acontece bem na nossa vez. Pior: em um cenário de consumo e distribuição de informação novo, em que ninguém sabe ao certo o real impacto na sociedade, política, relações e no próprio processo democrático.

Ok, parece que a vez de vocês jogarem é no nível hard. Mas a “desgraça”, como vocês escrevem, é também uma oportunidade de repensar o nosso ofício, nossos propósitos e nos reconectar com o público. Um amigo me disse uma coisa que me fez pensar: o progressismo avançou muito nos últimos anos, sem dúvida, mas também deixou muita gente para trás. A imprensa refletiu esse movimento – inclusive ignorando as necessidades de quem ficou para trás.

A edição do JC depois da “desgraça” foi a melhor que li até agora. Me prendeu do começo ao fim: das pautas, conectadas ao noticiário de fora da USP, às soluções de edição (títulos criativos, ilustrações e gráficos interessantes), vocês conseguiram produzir uma edição que traduz o momento em que estamos vivendo, com o olhar de quem vocês são. Me pareceu um jornalismo com mais vontade, menos preso a padrões e regras, e mais conectado com o propósito de noticiar – que é o que o jornalismo deveria ser. Suásticas pintadas, evento sem diversidade, impacto do legislativo sobre a USP, cortes na ciência: problemas reais, notícias, pautas importantes, cobertas por quem se importa de verdade com elas. Pé no chão, jornalismo baseado em fatos e informações, e olhar crítico sobre eles – se preocupando em empacotar a mensagem de uma forma acessível para o público.

O governo Bolsonaro nem começou, mas dá pistas de como tentará despistar nós, jornalistas, com declarações absurdas, e fazer com que o público não acredite na imprensa. A gente precisa criar uma nova narrativa, nossa, que não se paute apenas pela agenda deles, mas pelo que nós achamos importante que seja noticiado. Repercutir os absurdos é quase irresistível, mas tem muita vida acontecendo aqui do nosso lado. E o jornalismo local, conectado com as necessidades de pessoas reais, é fundamental para reconquistar a confiança e a base, sem deixar ninguém para trás.