Escorreguei no acaso

Por Mariangela Castro

Era um dia chuvoso, eu estava correndo, e assim começa essa história. A pressa nos faz optar por passagens curtas. Ao atravessar o CRUSP atrasada para uma reunião, me pareceu óbvio cortar caminho pela terra em vez de seguir o longo corredor de concreto que cruza o conjunto residencial.

Andei devagar. Mochila pesada. Um passo de cada vez.

Não adiantou. Prendi a respiração, fechei os olhos e… Aconteceu. Eu caí de cara na lama. Muita lama. Como assim? Escorreguei? Me demorou 2 ou 3 minutos naquela poça para assimilar o triste acontecimento. Quem olhasse de longe certamente iria enxergar apenas um corpo morto estirado.

Da ponta da minha testa, entrando na minha boca, afundando nos meus dedos e sujando meus sapatos, tinha lama.

Ainda sem entender, levantei apenas a cabeça e meu par de olhos trombou com o rosto preocupado de um jovem da mesma idade que eu. O olhar piedoso não escondia a tensão de seus lábios, ele estava se segurando para não rir. “Moça, eu moro aqui no CRUSP, quer tomar um banho na minha casa?”

Como uma dama em apuros salva por seu príncipe encantado, levantei e segui o rapaz. “Você está bem? Não viu a poça no caminho?” A simpatia do garoto perfeito me irritava. Querido, tem lama até no meu sutiã, não quero conversar.

Não tive tempo de reparar em seu apartamento. Foi tudo rápido. Entrei, esvaziei minha bolsa ensopada: tirei carteira, celular, computador e livros. Estendi tudo em sua mesa e fui ao banheiro.

Quando a água do chuveiro encostou na minha pele, meus olhos saltaram e eu levei um susto. A súbita realidade me assaltou. PÁ! Porra Mariangela. Você está pelada no chuveiro de um cara que nunca viu na vida. Todos seus pertences ficaram a mostra na sala. Ninguém sabe onde você está. Que merda você tem na cabeça?

Fui a protagonista de um filme de terror. Aquela que decide entrar na casa de um estranho e se fazer vulnerável. Ele pode vir com uma faca, mesmo de cozinha… Pode me roubar, me estuprar, me matar; e eu nem sequer tranquei a fechadura do banheiro.

A água escorre em minha pele, se mistura com a lama, eu não sei o que fazer. Toc toc. Prendo a respiração. Meu ímpeto é gritar. “Oi…”, diz o assassino e sua conveniente voz gentil, “só queria dizer que tô indo na casa de uma amiga aqui do lado, pegar uma roupa limpa pra você vestir”. Ridículo. Eu tenho certeza que ele vai me matar. “Beleza, obrigada!”

A porta bateu. Eu respiro fundo e desligo chuveiro. Devo ter só 5 minutos até que o sádico volte.

Me visto o mais rápido que consigo. Coloco a roupa suja por cima da pele molhada, não deu tempo de tirar a lama do cabelo, quem dirá de secar a água. Abro a porta devagar e, constatando o vazio da casa, agarro meus pertences e corro. Sem olhar pra trás, sem dizer adeus, deixando um rastro de terra pelo caminho.

Hoje, conto essa história para minhas amigas quando o assunto é vergonha, loucura ou medo. Todas elas se compadecem pelo criminoso. Ouvi até a teoria de que o jovem estudante seria o amor da minha vida, e essa tinha sido a forma engraçada que o destino encontrou de cruzar nosso caminho.

Possível amor/assassino, eu não sei se ainda está na USP, se lê o JC ou se lembra de mim. Se você, leitor, em algum momento estudou geografia na FFLCH, morou no CRUSP e convidou uma garota suja de lama pra tomar banho em sua casa, é muito possível que eu tenha escrito essa crônica para você.

É que eu sou mulher, e qualquer cara é uma possível ameaça. Mas se o acaso em que escorreguei era só uma boa pessoa, fazendo uma boa ação para uma desconhecida, desculpa ter sujado seu banheiro. (pelo menos eu tô viva pra contar essa história).