Homens, armas e chans: a receita para os massacres

Construção social da masculinidade tem relação com fetiche pelas armas e discurso de ódio

Por Bruna Caetano

Ilustração: Letícia Cescon

Enquanto se discute o papel das doenças mentais de pessoas que cometem os conhecidos mass shootings, é certo que existe um padrão nessa categoria de homicídios, independente da saúde dos protagonistas – principalmente nos realizados em escolas. Fato é que a grande maioria desses tiroteios em massa são cometidos por homens brancos, e um exemplo disso é os Estados Unidos, que lidera a lista. No país, dos 96 mass shootings cometidos entre 1982 e 2018, 94 foram protagonizados por homens, e a maioria eram brancos.

Para Pedro Ambra, professor da Universidade Ibirapuera e autor do livro “O que é um homem? Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente”, a relação entre a masculinidade e as armas caminha junto com a compreensão do papel da arma e dos homens na sociedade. A partir da modernidade, surge a ideia de que o exército deve defender a nação e ser composto por homens, e a cultura da violência faz parte da educação dos meninos. Desde cedo, são ensinados que a agressividade e masculinidade são sinônimos, além de terem seus sentimentos reprimidos pela masculinidade hegemônica.

Segundo ele, há uma reação global a um período de conquistas de direitos sociais por parte de minorias. Passou-se a ser construído um discurso de que é necessário evitar que negros, negras, mulheres e LGBTQ+ tomem o lugar dos homens brancos na sociedade para que as tradições não sejam destruídas. A psicanálise atribui aos homens um certo culto ao passado onde, quando suas atitudes tidas como “padrão” passam a ser contestadas, começam a imaginar que antes as coisas as coisas eram melhores. Ou, em outras palavras, que “o mundo está ficando chato”.

Discursos como esse são presentes em fóruns da darknet, os chans, somados ao perfil de celibatários involuntários (ou incels, na sigla em inglês) homens frustrados e rejeitados sexualmente. Esse é o caldo que une os frequentadores do Dogolachan, fórum que participavam Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, 25, os responsáveis pelo atentado na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, no dia 13 de março. De acordo com Pedro Ambra, muitos dos usuários com esse perfil assumem uma posição paranoide, onde frente à angústia, culpam a mulher e o feminismo pela rejeição, ou o grupo com opiniões contrárias por não se submeterem a eles.

Com a masculinidade construída junto ao culto às armas e violência, e o discurso de ódio protagonizado pelos homens, a conjuntura política do país também contribui para a estimulação desses discursos e surgimento de ataques como o de Suzano. O presidente Jair Bolsonaro foi eleito com a retórica de ataque às minorias e atribuição de todos os problemas do país à uma “hegemonia marxista”, guiado pelos ensinamentos de seu guru intelectual, Olavo de Carvalho.

O apelo pelas armas não é fruto apenas de um fator cultural estabelecido, mas é também estimulado dentro da sociedade quando os homens se tornam o público alvo de medidas como o decreto assinado pelo presidente, que flexibiliza a posse de armas. Na visão do psicanalista, o governo está, através do decreto, produzindo masculinidades tangenciadas pela violência: “A partir do momento em que o governo defende e coloca a arma em um lugar quase erotizado na população, e que tem como público alvo os homens, começa a criar um discurso no qual, para ser homem, é preciso se aproximar desse tipo de postura.”

No final de agosto de 2018, foi publicado pela revista científica JAMA um levantamento que diz que o Brasil lidera a lista de assassinatos por armas de fogo, sendo os homicídios a causa de 94% dos óbitos. O relatório apontava que, em 2016, foram registradas 43.200 mortes de brasileiros. No ranking geral, os Estados Unidos é o vice-líder, e junto com o Brasil, assinam 32% das mortes por armas no mundo.

De acordo com dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz, no período entre 2008 e 2017, houve um salto de 6.260 para 33.021 na quantidade de armas em circulação no Brasil. Dos oito casos de ataques a tiros de alunos ou ex-alunos a escolas brasileiras registrados entre 2002 e 2019, 77,7% envolveram o uso de revólveres que possuem o comércio permitido no país.

Com a relação entre a masculinidade e o culto ao passado, Ambra acredita que o decreto do governo Bolsonaro pode trazer a aproximação do homem à imagem construída na sociedade, junto a um saudosismo aos anos de ditadura militar, o que pode desencadear novos ataques.