Ingressar na USP é (só) o começo

Neste ano, 40% dos calouros de todos os cursos vieram de escolas públicas. Da invisibilidade, caminhamos para mudanças visíveis

Por Ane Cristina

A USP iniciou o processo de inclusão no Sisu (Sistema de Seleção Unificada) há 4 anos. Isso permitiu a entrada de mais de 6 mil alunos através do ENEM. O objetivo da Universidade é de que metade dos calouros em cada curso sejam oriundos da rede pública de ensino. Victória Tavares, caloura do curso de Pedagogia, é uma desses novos alunos da USP.

A estudante de 18 anos passou em 5º lugar entre as 36 vagas reservadas para alunos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que cursaram o ensino médio integralmente em escola pública. Quando o resultado saiu, tirou o print da tela e postou no facebook: “Agradeço aos amigos, professores, a todas as pessoas que fizeram parte disso e principalmente à minha mãe: aquela que não teve a oportunidade de estudar e que hoje me motiva e acredita na Victória de uma forma surpreendente”.

Ela e seus pais, José Ailton e Genilda, vieram de Igaci, cidade de 25 mil habitantes em Alagoas, quando Victória tinha apenas dois anos. Sua mãe não estudou e seu pai fez apenas o ensino fundamental. Hoje ele trabalha como autônomo vendendo bijuterias e Genilda faz alguns “bicos” como costureira. A renda mensal da família gira em torno de um salário mínimo, que sustenta quatro pessoas, incluindo Mariana, a irmã caçula de 8 anos.

O orçamento apertado foi a principal razão pela qual Victória começou a trabalhar aos 16 anos, no terceiro ano do ensino médio. Ela era jovem aprendiz na área administrativa de um hospital público na zona sul de São Paulo. “Não era fácil, eu chegava em casa super tarde, acordava cedo, no final da semana já estava morta, mas a gente sempre dá um jeito”. O contrato encerrou em maio do ano passado e por ser menor de idade, ela não foi efetivada.

Para realizar o sonho de estudar na USP, ela começou a estudar em um cursinho popular com professores voluntários. A mensalidade foi paga com o dinheiro que juntou quando era jovem aprendiz. Foi lá que a vontade de entrar numa universidade pública ficou mais forte. “Eu sabia que não podia pagar uma faculdade, mas também sabia que não tinha capacidade de entrar numa pública. Só depois do cursinho eu comecei a ter motivação e a acreditar que eu teria que conseguir, porque era a única opção.”

Por isso, passar na renomada USP foi inesperado: “Não deixei de sair à noite para ficar estudando. Achei que esse não seria o meu ano.” Da sensação de surpresa, veio o leve desespero. Uma das primeiras coisas que pensou quando conheceu o campus: “sabia que a USP era branca, mas não que era tão branca assim. É uma dificuldade a ser enfrentada”, conta a estudante, que aproveitou o carnaval para se fantasiar de Barbie fascista, satirizando pessoas socialmente privilegiadas que ignoram a situação.

Não repara na bagunça
Enquanto descíamos uma ladeira indo da estação Jabaquara para sua casa, no Jardim Oriental — caminhada que leva uns 15 minutos e Victória faz todo dia ao voltar da USP “voando” — ela me conta que era aniversário de sua mãe. Genilda disse que não queria nada, mas Victoria foi à casa de duas amigas que moravam perto e fez uma surpresa. Depois postou no Instagram a foto tremida da mãe sorrindo com o bolo à frente e a luz da vela tremeluzindo.

Arte: Daniel Medina

A admiração à mulher que sempre a apoia não fica restrita a posts em redes sociais, mas também é demonstrada em atitudes como essa. E esse tratamento simboliza ainda o posicionamento político de Victoria, que se considera feminista desde sua adolescência – no dia 8 de março foi difícil conseguir falar com ela, que passou a tarde toda no ato #8M. Talvez isso também explique porque sua irmã a segue por toda a casa.

Victória pede para não reparar na bagunça da casa pequena. A entrada fica nos fundos de um quintal em que existem outras casas. A distância dali para a USP é de aproximadamente 12 quilômetros e ela demora, no mínimo, uma hora e meia na viagem que conta com caminhada, metrô, uma baldeação de metrô e o ônibus circular 8012-10.

O pedido de não reparar na bagunça, que não havia, parece vir muito mais por costume do que por real vergonha. Aliás, “vergonha” seria um péssimo substantivo para relacionar à Victoria. Ela não se incomoda em falar das dificuldades que ela e sua família enfrentaram e vão enfrentar. Não há sinal algum de hesitação. Pelo contrário, ela se orgulha e trata tudo com o peso de um dever: “Quando eu venho pra onde eu moro e volto para os amigos que eu tenho, eu sou a pessoa que estuda na USP. Isso traz uma responsabilidade muito grande”.

A ausência de amigos pregressos à Universidade frequentando esse mesmo lugar, somada à quantidade de pessoas brancas na USP, trazem uma sensação de não-pertencimento. “Quis chorar em diversas aulas por achar que esse não era o meu lugar” ela fala, com muita calma. “Todo mundo merece estar lá dentro, ter esse privilégio e sentir, pelo menos um pouquinho, do que é estar ali.”

Comum a quase todo estudante 
Apesar de tudo, há coisas que parecem instantâneas para muitos uspianos e Victória já experimentou algumas delas, como o estresse com a demora do circular e sua lotação: o ponto da Faculdade de Educação, que ela usa, é o último, quase impossível embarcar.

O amor pelo bandejão, que faz vários alunos baterem ponto no restaurante universitário, chegou para Victória. Outra situação comum é a possibilidade de se aborrecer. A caloura conta o caso de uma colega de classe que, na primeira semana de aula, mostrou seu ponto de vista sobre o malefício de todos os tipos de racismo, incluindo o “racismo reverso” (a crença de que pessoas brancas também podem sofrer preconceito por características físicas), o que gerou polêmica na sala de aula…

Nessa semana, Victória vai começar a trabalhar na área de RH de uma agência de publicidade, em regime CLT. Ela passou na entrevista antes de começar a estudar e tem certeza de que tudo vai ficar muito mais corrido. Serão poucas horas livres. Por outro lado, o salário que irá receber vai ajudá-la não só a se manter na USP enquanto não consegue um estágio na área pedagógica, como na renda da família.

Como alguém que faz parte da primeira geração da família a entrar na faculdade, o diploma é a maior ambição, então a meta é conseguir se formar. O futuro profissional ainda é incerto: “Não tenho certeza se quero ser professora, primeiro quero aprender sobre todas as áreas que um pedagogo pode atuar e, só depois, definir o meu futuro”.

Dos mais de 11 mil alunos que começaram a estudar na USP esse ano, não será a maioria que vai se identificar com a história de Victoria, mas a cada ano, muitos mais se identificarão. Que nos próximos anos essa trajetória se torne menos árdua. E que a USP seja um ambiente mais acolhedor. Ainda estamos no começo.