Para além da porta: o alojamento estudantil da USP em São Carlos

O Jornal do Campus viajou ao interior do estado de São Paulo para mostrar o único conjunto residencial da Universidade que é gerido pelos seus próprios moradores

Por Matheus Oliveira

Porta 21, conhecida no alojamento pela sua estética peculiar. Foto: Matheus Oliveira

“É porque quando eu cheguei aqui eu tinha o cabelo grande… Mas, na verdade, é um conjunto de fatores. Teve uma vez que eu bebi demais e acabei passando mau em cima de uma moita, juntando o cabelo, fiquei meio camuflado no mato, aí agora todo mundo me chama de Moita mesmo”.

Conhecido por quase todos os cerca 350 moradores do alojamento estudantil do qual é diretor-geral desde o início do ano, Victor Dutra Teixeira, ou Moita, como foi batizado assim que chegou à universidade para cursar matemática no ano de 2016, me recebe em uma noite fria de sexta-feira em frente ao bloco E, o mais novo do conjunto residencial da USP São Carlos. Logo que me vê, aceno com um cigarro ainda aceso: “oi, você é o Moita, diretor daqui?”, “isso, sou eu mesmo. Desculpa o atraso, era o aniversário de uma amiga e eu tinha ido dar um abraço nela”, “imagina! Eu acabei de chegar, não passou nem meio cigarro”, “vamos entrar? Você vai ficar nesse prédio amarelo aí”, “claro”.  

Ao entrar no prédio, a primeira coisa que chama a atenção é um espaço de convivência onde cerca de meia dúzia de alunos conversam sentados sobre um jogo de sofas usados que, juntos, quase desenham a forma de um círculo. Moita explica que, como aquele foi o último bloco a ser construído, a arquitetura do lugar foi pensada para abrigar espaços coletivos, o que, entretanto, não se aplica aos demais quatro prédios, que não possuem espaços de convivência como o bloco E.

Além do espaço onde normalmente, segundo Moita, “a galera escuta música e troca uma ideia”, a ampla sala ainda conta com uma cozinha coletiva amparada por três fogões e uma lavanderia, com o mesmo número de máquinas em funcionamento. A porta de entrada por onde o JC foi recepcionado revela muito sobre o lugar. Diferente de outros conjuntos residenciais espalhados pelos campus da USP, tanto dentro quanto fora da capital, em São Carlos, os próprios alunos é quem gerenciam o alojamento estudantil.

Ainda com a mochila nas costas e apoiado no encosto de um sofá de couro sintético gasto, no mais autêntico estilo do recém chegado que ainda se habitua com a intensidade da luz, pergunto a Moita sua cidade natal e há quanto tempo ele vive no alojamento. “Eu sou de uma cidade minúscula do interior de São Paulo, Potirendaba, um ovo! Mas moro aqui desde 2016 mesmo”.

Arte: Daniel Medina

Passada as apresentações, Moita me leva ao quarto onde irei ficar. No caminho, dois lances de escada e um largo corredor amarelo bucólico dão as boas-vindas. O mesmo amarelo que estampa as paredes também está presente nas portas, só que em porção mais viva. Em uma delas, a de número 21, um soneto de Vinicius de Morais (o da separação) escrito em 1938 somasse a imagem do atual presidente do Brasil ornado com um bigode hitlerista.

Quarto número 29. Bato a porta e sou recebido por um homem de poucas palavras. Na verdade, a única coisa que recordo ter ouvido dele foi a indicação sobre qual cama, das 3 disponíveis, eu poderia ficar. Me acomodo e reparo no quarto, que além dos aposentos, também possui dois guarda-roupas pequenos, duas mesas de estudo e uma geladeira velha marrom. Em um acordo de silêncio mútuo, escrevo esse texto enquanto, neste momento, meu pejoso anfitrião mira nos alvos de um jogo de tiros curvado sobre uma cadeira de computador.

Todavia, não é disso que esse texto se trata. E agora que o ontem já passou, posso narrar, de fato, a história que me fez vir até aqui.

 

Palavra de ordem

Diferente da interpretação comum, no alojamento estudantil de São Carlos a única “palavra de ordem” admitida é autogestão. “Todo ano uma assembleia vota nos moradores que irão representar e gerir o aloja democraticamente”, explica Moita, que atualmente ocupa o cargo de diretor-geral do espaço.

A história por trás da autogestão que hoje é colocada em prática remonta ao ano de 1967, plena ditadura militar, “só um ano antes do AI-5”, como faz lembrar o entrevistado. Naquela época, um grupo de estudantes ocupou um prédio ocioso que, originalmente, havia sido construído para a recepção de atletas. A mobilização que começou com um pequeno número de alunos logo se expandiu e, em poucos dias, dezenas de pessoas aderiram ao movimento de reivindicação do edifício, que viria a se tornar o primeiro bloco do que hoje é o alojamento estudantil.   

Após inúmeros protestos, a USP cedeu, e nos anos seguintes outros dois prédios ㄧ agora blocos B e C ㄧ foram inaugurados. Hoje, o alojamento conta com 5 blocos e 124 quartos onde convivem cerca de 350 moradores dos cinco cursos distintos que o polo oferece.

Todos os anos, desde a fundação do alojamento, uma assembleia realizada pelos moradores elege 12 representantes para participar da comissão de autogestão, que é responsável por administrar o conjunto residêncial e mediar as demandas entre o espaço e a universidade. Palavra repetida a exaustão por Moita, no modelo de autogestão, todas as pautas são discutidas “democraticamente” entre os estudantes.

Ao falar sobre as atribuições que o cargo de diretor-geral exige, Moita comenta que “a autogestão implica em manter um bom diálogo com a assistência social e com a universidade para entender e solucionar os problemas do aloja da melhor maneira, afinal, nós é quem vivemos aqui e sabemos o que está bom e o que não está”.

Manter o funcionamento da autogestão, entretanto, não é um caminho sem obstáculos. Em 2017, poucos meses após Moita ingressar na USP, um grupo de estudantes, incluindo ele, ocupou a prefeitura do campus depois de, como ele pontua, “inúmeras” tentativas de diálogo com as instâncias da universidade. Na época, o alojamento chegou a ficar um ano sem nenhum tipo de manutenção, o que inflou o movimento: “nós não quebramos ou danificamos nada. Ocupamos o prédio com o único objetivo de que a manutenção voltasse a ser feita”, e conclui: “Depois de alguns dias, atenderam aos nossos pedidos, mas, no meio disso, chegaram até a pedir o fim da autogestão, que nasceu junto com o aloja”.

Sobre a vida no alojamento, Moita é categórico: “Morar no aloja permite que você tenha mais proximidade e consiga entender as demandas individuais de pessoas que talvez você nem tivesse contato caso não estivesse aqui”, diz.

Alojamento estudantil de São Carlos em 1967, um ano antes do AI-5. Foto: Divulgação