Qual o peso do racismo na saúde mental dos alunos?

Preconceito e discriminação podem influenciar o desempenho acadêmico

Por Matheus Souza

repórter que escreve esse texto tem a pele preta ‒ é preciso dizer. Caso contrário, você provavelmente não imaginaria. Nos espaços historicamente elitizados que são as universidades brasileiras, o imaginário é povoado de pessoas brancas. Como isso afeta os estudantes que não se encaixam nesse padrão?

Desde que as políticas de inclusão social começaram a ser adotadas, o perfil dos estudantes universitários vem mudando. Na USP, entre 2018 e 2019 o número de ingressantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas aumentou de 18,5% para 25,7%, segundo reportagem do Jornal da USP. Em paralelo, a discussão sobre saúde mental na universidade também cresceu, mas com pouca ênfase nas questões raciais.

O meio acadêmico costuma ser um ambiente competitivo e que coloca os alunos sob pressão constante. Para os que fazem parte de minorias, caso dos estudantes negros, essa pressão vem acompanhada de ainda mais obstáculos.

“Ao chegar nas universidades públicas, esses alunos têm encontrado um ambiente hostil, além de uma tradição de produção de conhecimento que tem por base referências eurocêntricas”, explica o professor Alessandro de Oliveira dos Santos, do Instituto de Psicologia (IP) da USP. Isso causa uma sensação de não pertencimento que pode resultar em evasão, queda no desempenho acadêmico e problemas psicológicos.

Mateus Costa, aluno do sexto ano de Medicina, conhece esse sentimento. Apesar de nunca ter sofrido nenhum caso de preconceito por parte de colegas ou professores, ele conta que em algumas ocasiões já se sentiu desconfortável por ser negro. “Você percebe, às vezes, que aquele espaço talvez não seja pra você, ou que aquele contexto, as coisas das quais as pessoas falam, não se aplicam a você, por causa da diferença de realidade e experiência de vida que as pessoas têm”, conta o estudante.

Pesquisa aponta problemas

Um estudo publicado em 2018 na revista Interfaces Brasil/Canadá, realizado pelo professor Alessandro e mais duas pesquisadoras, descreve as experiências de 15 mulheres negras na USP, que vão desde o impedimento de circular em alguns lugares até perder oportunidades acadêmicas por precisar trabalhar. Os depoimentos são muito parecidos com o que disseram as estudantes entrevistadas pela reportagem.

Professor Alessandro é especialista em relações étnico-raciais. Foto: Jade Rezende

“Quando trocaram os funcionários da portaria do departamento, toda vez que eu chegava lá num horário em que era um funcionário novo, eles me pediam a carteirinha. Eu já estava no terceiro ano”, diz Catarina Ferreira, aluna de jornalismo. Foi depois de entrar na faculdade que ela percebeu que precisava de tratamento psicológico.

O estudo destaca que preconceito e discriminação podem causar desde baixa autoestima até narcotização e transtornos psiquiátricos.

Na pesquisa, as mulheres também falaram sobre afetividade, e a constatação de que elas não costumam ser vistas pelos homens como possibilidade para relacionamentos. Essa solidão da mulher negra, comum na sociedade, pode ser ainda mais marcada dentro do ambiente universitário, como coloca Letícia Lé, do Direito.

Ela conta que esse foi um dos temas discutidos na primeira reunião do Angela Davis, coletivo feminista negro recém fundado na Faculdade de Direito. “As pessoas te veem ou como uma fonte inacabável de conhecimento sobre política e pautas raciais, um poste de informação, ou como a pessoa que eles vão pegar na sexta à noite”, diz Letícia. “E não sou só eu que sinto isso, foi um sentimento geral das meninas”.

Atualmente, o professor Alessandro desenvolve uma pesquisa que irá analisar as possibilidades para o bem viver de estudantes negros no ensino superior. “Bem viver” é um conceito amplo que envolve a melhoria da qualidade de vida, assim como acesso à educação de qualidade, trabalho digno e outros aspectos, a partir de um ponto de vista menos individualizado, que pensa também o bem-estar coletivo e desenvolvimento sustentável.

Após a conclusão da pesquisa, espera-se que os resultados possam contribuir para a criação de políticas de permanência voltadas especificamente para este grupo.

 

Mudança social e individualização
Na Faculdade de Saúde Pública, pesquisa relaciona fatores socioculturais a sofrimento psíquico

A “epidemia” do adoecimento mental não acontece no vácuo, é reflexo também de um conjunto de fatores socioculturais. Thiago Marques Leão, doutor em Saúde Pública pela USP, analisa parte desses fatores em sua pesquisa de pós-doutorado “Mudanças Sociais, Individualização e o Sofrimento Psíquico entre Estudantes Universitários”, ainda em andamento.

Segundo o pesquisador, as mudanças sociais das últimas décadas têm transformado as principais instituições de base da sociedade moderna. “A família tradicional, por exemplo, era formada por um homem que trabalha, uma mulher que procria, e filhos que assumem certas funções ao atingir o estágio laboral. A própria ampliação do capitalismo implica na mulher sair de casa e trabalhar, o que já começa a desestruturar o que é essa família”, explica. A dissolução desse modelo tradicional, por sua vez, resulta em indivíduos com menos suporte ou apoio social.

Diversas outras áreas, como as relações de trabalho, a sexualidade e as noções de gênero, passaram por transformações semelhantes. Nesse novo contexto, as formas coletivas de lidar com os problemas produzidos pela sociedade são cada vez mais depositados nos indivíduos.

De acordo com a hipótese levantada pelo pesquisador, o ambiente universitário é um grande exemplo do impacto causado por essas mudanças. “O que antes era uma questão coletiva e institucional, como permanência estudantil, se manifesta cada vez mais como culpa ou responsabilidade individual: é o estudante que não se esforça o suficiente, não acorda cedo o suficiente, não se organiza o bastante para as coisas darem certo”, diz Thiago.

“E não é só uma atribuição externa de culpa, a gente também se atribui culpa individualmente, e eu acho que isso, de alguma forma, está no núcleo do porquê se adoece cada vez mais na universidade”.

No caso dos estudantes negros, a população negra está mais exposta a uma série de conflitos sociais e políticos: gentrificação, pobreza, baixo acesso à escolaridade, violência física e simbólica etc. Logo, também estão expostos a mais situações de autoculpabilização. “Seguindo a linha de raciocínio, de que essas contradições e dificuldades são depositadas nos indivíduos, sobre certas populações vai ter ainda mais coisa depositada”, explica o pesquisador.

Ao mesmo tempo, os estudantes negros estão entre os que mais se organizam no ambiente universitário. Isso ocorre principalmente através de coletivos, que acabam se tornando espaços seguros em que esses alunos se sentem à vontade para compartilhar suas angústias e lidar com elas conjuntamente. “Se consideramos que parte desse sofrimento diz respeito à dificuldade de coletivização de conflitos, essa organização é muito positiva”.

Para Thiago, o destaque que a pauta da saúde mental tem recebido é um sinal positivo de que a sociedade está disposta a discutir o tema. Entretanto, a discussão ainda ocorre de modo a reforçar a ideia de que essa é uma questão de responsabilidade individual. “A clínica individual é muito importante e relevante, mas achar que isso, por si só, vai resolver o problema, é equivocado”.