Universidade falha ao fiscalizar cotas PPI

Mais de 300 denúncias foram recebidas pelo Comitê Antifraude às Cotas Raciais na USP

Por Jonas Santana

Nathan Augusto prestou a última edição da Fuvest para o curso de Medicina da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) na modalidade PPI, para candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Das 7 vagas disponibilizadas, o estudante, que se autodeclara pardo, ficou na 8ª colocação.

Porém, até a 5a chamada da Fuvest não houve rotatividade de vagas para PPI, o que instigou a curiosidade de Nathan em saber se, ao menos, elas estavam sendo preenchidas por estudantes que são, de fato, pretos, pardos ou indígenas. Dessa forma, ao procurar nas redes sociais imagens da turma de aprovados, Nathan constatou que quase não havia pessoas que justificassem o uso de cotas étnico-raciais.

Aprovada pelo Conselho Universitário no ano passado, a Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão da USP prevê que casos como o relatado por Nathan sejam acatados pela Universidade a partir da apresentação de um boletim de ocorrência, feito presencialmente na delegacia. Após isso, o denunciado será chamado a reafirmar sua autodeclaração e deverá ser aberta sindicância ou até mesmo processo administrativo. Se comprovada a fraude, o aluno perderá a vaga e estará sujeito a sanções criminais.

No entanto, a necessidade de uma denúncia formal é intimidante, pois expõe a integridade do denunciante sem garantia de resultado efetivo. Além disso, evidencia que a Universidade transfere a responsabilidade da fiscalização para os próprios estudantes. E, ao contrário do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), a Fuvest, neste segundo ano de implementação das ações afirmativas, não divulgou a lista dos aprovados por modalidade, o que dificulta a identificação. “A gente se vê em uma situação de impotência, porque é chato fazer a justiça com as próprias mãos”, disse o estudante.

Pela necessidade da matrícula presencial, houve a rotatividade de 2 vagas para PPI no curso de Medicina da FOB e Nathan Augusto foi aprovado na 6ª chamada.

Comitê Antifraude
Impulsionado por ativistas e coletivos ligados ao movimento negro da Universidade, foi fundado o Comitê Antifraude às Cotas Raciais na USP. De caráter extra-oficial e temporário, o comitê surgiu para contribuir no combate às fraudes e criou um canal online de recebimento de denúncias anônimas de possíveis casos de fraudes no sistema de cotas étnico-raciais. As denúncias formarão um dossiê organizado pelo Núcleo de Consciência Negra (NCN) da USP, que será formalmente encaminhado às autoridades competentes para devida apuração. Até o fechamento desta reportagem, mais de 300 denúncias foram recebidas pelo canal.

Primeiro encontro de 2019 do Comitê Antifraude às Cotas Raciais aconteceu no Núcleo de Consciência Negra da USP (Foto: Lucas Módolo/Arquivo pessoal)

“Temos o sincero desejo de contribuir para que a política pública de reserva de vagas para estudantes PPI seja adequadamente executada, aprimorada, ampliada e fortalecida”, afirmou o estudante de Direito Igor Leonardo, membro do coletivo Quilombo Oxê da Faculdade de Direito da USP e coidealizador do Comitê Antifraude. Ele lembra que não é de competência do comitê avaliar qualquer estudante que tenha ingressado pelo sistema de reserva de vagas. “Não temos a prerrogativa e muito menos a disposição em questionar a autodeclaração de quem quer que seja”, comenta.

Questionada se a fiscalização nas cotas fere o conceito de autodeclaração, critério para utilização dessa ação afirmativa, Maria José Menezes, membra da coordenação do NCN, disse acreditar que esse mecanismo é importante, mas não pode ser único. Ela ressalta que, para evitar fraudes em concursos públicos, o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tornou constitucional, pela lei nº 12.990/2014, o mecanismo de heteroidentificação, que sugere a identificação racial por outras pessoas, o contrário de “autoidentificação”, como feito pela USP.

Em outras universidades
Essa questão não é novidade para muitas universidades públicas que há anos implantaram às cotas, fato positivo à USP que pode aplicar métodos que já tiveram êxito. No final do ano passado, por exemplo, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) expulsou 27 alunos que fraudaram o sistema de cotas. Eles se autodeclararam como pretos ou pardos, mas a declaração não foi aprovada pela comissão de verificação da universidade.

Já neste ano, na primeira edição da comissão criada para avaliar os casos individualmente na UFMG, dos 885 candidatos aprovados por cotas étnico-raciais, 346 tiveram sua matrícula indeferida, e, desses, cerca de 200 estão entrando com recurso. Caique Belchior, estudante de Psicologia da UFMG, ativista do movimento negro e membro da comissão, que foi composta por docentes, discentes e técnicos administrativos negros e não-negros, conta que houve uma oficina para quem fosse compor as comissões.

Na realização da matrícula presencial, o candidato, que foi aprovado pelas cotas étnico-raciais, precisou sentar à frente da banca, ler um documento de autodeclaração e assiná-lo. Enquanto isso, a banca realizava o procedimento de heteroidentificação. Quando indeferido, os avaliadores precisavam justificar a decisão, que era a partir da ideia de que o candidato possuía ou não fenotípicos negros, ignorando o fato do indivíduo ser branco ou não-branco.

As comissões foram compostas por 5 pessoas e a decisão era feita pela maioria, não unanimidade, como acontece em outras universidades. “É mais ou menos o que acontece na sociedade: em algumas pessoas podem gerar dúvidas, mas o que a maioria disser prevalece”, afirma o estudante.

Questionado sobre a importância de especialistas da temática étnica comporem a comissão, Caique Belchior lembrou que cotidianamente as pessoas fazem heteroidentificação. “Quando acontece algum caso de racismo e quando uma pessoa diz que alguém é negro ou não, ela não precisou ser especialista para isso”, finalizou.