Como nos lembraremos do Filipe

Depoimentos colhidos por Ane Cristina

Conheci o Fi na primeira semana de aula. Entramos juntos na geografia. Nós tínhamos que fazer um trabalho em grupo e ele tinha uns amigos que estudaram com ele antes. Eles me chamaram para formar grupo. Com tempo, ficamos muito amigos.

Arte: Pietra Carvalho

A gente viajava bastante juntos. Fomos para Extrema (MG), onde ele e os pais dele têm um sítio. Inclusive, o nome desse sítio é Beija-flor. A mãe dele contou que, quando eles compraram o sítio, o Fi era bem pequenininho e não parava quieto. Ele subia em todos os pés de fruta e de tudo que tinha lá. E era muito difícil o Filipe parar em casa. Aí eles pensaram que o nome do sítio tinha que ser beija-flor, em homenagem ao Fi, porque o beija-flor não para quieto, igual o Fi.

Quando fomos para o sítio, no aniversário dele de 18 anos, inventamos de ir numa cachoeira que a gente tinha visto na internet que tinha em Extrema. O Fi nunca tinha ido lá e não sabia nem onde era, mesmo já tendo o sítio há uns 16 anos. Nós vimos mais ou menos na internet onde era a cachoeira e fomos. Não tinha uma trilha específica, eram uns lugares bem estranhos para passar e no meio do mato. Demoramos três horas para chegar. Quando achamos a cachoeira, era um mini-riacho. Uma bica de água. E dentro de um clube particular. Não queriam deixar a gente entrar. Ficamos molhando o pé nela, porque era bem pequena.

Ficamos conversando nessa cachoeira, que nem sei se posso chamar de cachoeira, e o tempo passou muito rápido. Quando fomos ver, estava escuro e a gente precisava voltar para casa do Fi. Não lembrávamos como voltava e nossos celulares estavam quase descarregados. E fomos, na fé e na coragem, tentar voltar. O Filipe, do grupo, era o mais proativo de todos. Era quem ia na frente de todo mundo, tentava fazer um caminho, mesmo que ele não soubesse nada do que tava fazendo, ele tentava falar que sabia alguma coisa. Ele sempre foi essa pessoa que queria fazer tudo por todo mundo e ajudar todos.

Aí ele foi na frente e a gente foi seguindo. Não fazíamos a menor ideia de onde estávamos. Estava muito escuro, no meio do mato. E nós sete, sem entender o que estávamos fazendo, ouvindo uns barulhos de uns bichos, falando que íamos morrer. A gente tava só com um celular com bateria, e usamos tanto para iluminar o caminho quanto para sinalizar para os carros que estavam passando que tinha gente na estrada. Começamos a cantar qualquer música para passar o tempo, porque, se na ida demorou 3 horas, na volta demorou muito mais. E o Filipe, como estava sempre na frente, se cortou todo. E ele tava de chinelo, só usava tênis para jogar vôlei e olhe lá. Ele cortou o pé e foi fundo, não parava de sangrar. E a gente dizendo para parar para tentar estancar o sangue, só que não, do jeito marrento dele, ele quis continuar. E continuamos, ele com o pé escorrendo sangue. Nessa hora, uma amiga nossa tirou uma cerveja da mochila e a gente começou a beber. Demos pro Fi também porque ele já tava puto porque fizemos ele nos levar nessa cachoeira, sem nem saber para onde estávamos indo. Chegamos na casa dele acabados, não parávamos de rir de jeito nenhum. Foi uma história que sempre lembramos juntos e continuaremos lembrando.

No carnaval do ano passado eu desmaiei por pressão baixa e ele tava comigo. Caí em cima dele. Aí sentamos para eu melhorar, mas uma hora ele saiu correndo e voltou com um outro amigo do vôlei só pra mostrar como eu tava. Desde então, toda vez que a gente saía ele falava pra eu tomar cuidado pra não desmaiar, me zoando. E sempre falava essa história para todo mundo, o tempo todo, só para não deixar a zoeira morrer.

Teve outra vez que estávamos na casa de uns amigos nossos da geografia, tinha acontecido uma festa lá nesse dia e fomos dormir. Acordamos com uns barulhos, assustados, e estava o Fi abraçado na privada porque ele tinha bebido uma melancia cheia de vodka. Todo mundo foi dormir e ele continuou na festa. Ele sempre foi muito intenso nas coisas que fazia.

E a gente sempre lembrava dele com essa melancia atômica.

Foto: Acervo Pessoal

Filipe Varea Leme tinha 21 anos, estudava Geografia na FFLCH e foi encontrado morto no dia 30 de abril em um elevador da Escola Politécnica, onde trabalhava como monitor na sala de informática. O caso ainda está sendo investigado pela polícia. Com a autorização de seus pais, as histórias acima foram contadas por João Lucas Correia de Melo e Iuri Cardoso, estudantes da USP e amigos do Filipe. Esse jornal é feito por estudantes da USP como eles. O JC lamenta profundamente o ocorrido e se solidariza com a família e amigos de Filipe.