Confissões de um concurso de beleza em crise

Em um evento universitário esportivo, meninas de biquíni são a atração. A Poli-USP Santos questionou

Por Anny Oliveira e Larissa Santos

Arte: Júlia Vieira

Ana é novata na faculdade dos seus sonhos. Enquanto tenta conquistar seu lugar no mundo, a morena é selecionada entre seus veteranos para participar do concurso de beleza dos jogos universitários. Se ela não for, nenhum de seus colegas poderá jogar. Obrigada a ter o corpo harmônico e aptidão para a passarela, a novata precisa se tornar perfeita para ganhar o troféu para sua universidade.

Poderia ser uma sinopse de um filme da Netflix. Porém, de fictício só o nome Ana. Essa é a realidade das faculdades do litoral paulista, que participam dos “Jogos da Unisanta”, torneio universitário anual que acontece nas dependências da Universidade Santa Cecília (UNISANTA), na cidade de Santos. Entre as várias universidades participantes, está a Poli Santos, que oferece apenas o curso de Engenharia de Petróleo.

O evento é organizado pela administração da UNISANTA. No regulamento, o objetivo dos jogos é “estimular a prática de esportes de rendimento não profissional entre os universitários”. Entretanto, o que se destaca não é o esporte e sim, a beleza. Mais especificamente a beleza dos traços físicos, a desenvoltura no desfilar, a graça e a simpatia, a elegância dos gestos e a proporcionalidade das medidas.

Esses são os cinco aspectos avaliados pelos jurados do Concurso Rainha e Rei, realizado durante a abertura dos jogos. Enquanto cada modalidade esportiva ocupa no máximo meia página no documento de 8 páginas, existe uma inteira dedicada ao concurso. A inscrição nas passarelas da beleza é obrigatória. Uma mulher e um homem por curso. Sem a inscrição, a faculdade não pode participar dos jogos.  Caso o candidato inscrito não se apresente, além da sua instituição ser desclassificada, a multa é de R$ 998.

Pressão

Ana é ficção. Roberta Lerin Lovisi, não. A estudante de Engenharia de Petróleo acompanha a Poli Santos desde o debute da universidade em 2016. “Era o primeiro que a gente participava, não sabíamos bem como era, mas falavam que teria um desfile. Ficamos surpresas”. Desde o primeiro ano, era difícil ter pessoas se oferecendo espontaneamente para desfilar: a proposta de um concurso de beleza em um inter esportivo parecia incomum. Mas um casal foi formado e participou.

No ano seguinte, foi a vez de Roberta. Ela conta que o atual namorado tinha participado da primeira edição e queria concorrer de novo. “Eu falava que esse desfile não tinha nada a ver comigo, mas ele insistiu que seria legal nós dois irmos juntos, como um casal”. Sem outras candidatas devido a um campus pequeno e com poucas meninas, Roberta aceitou somente pela companhia do namorado.

Eis que chega 2019. Faltava 6 horas para o encerramento das inscrições. A Poli Santos ainda não tinha uma candidata a Rainha dos Jogos. O desespero tomou conta do grupo da atlética do WhatsApp, com várias mensagens lembrando que ainda faltava uma voluntária. Majoritariamente, eram mensagens de homens, tais como “meninas que quiserem, me chamem”, “se ninguém desfilar, a gente não joga” ou “alguém vai ter que se sacrificar pelo time”.

As meninas se sentiram desconfortáveis. Pressionadas. Uma discussão acalorada começou. “É só uma brincadeira”, disse um deles. “O desfile é para mostrar a bandeira e a camiseta da facul”, completou. Acusado de estar “forçando a barra”, um outro disse que “quem força a barra é a competição”. Das meninas, a mensagem “deixem a gente decidir” foi repetida diversas vezes.

Quanto a Roberta, no final das contas, mesmo não querendo, se voluntariou de novo.

Perfeitas

O regulamento do concurso é objetivo: além de ser obrigatória a participação nos jogos, sob pena de multa e exclusão dos jogos, os concorrentes ainda são forçados a se submeterem às ordens. Uma delas, desfilar em traje de praia: maiô, biquíni ou sunga.

Quando participou pela primeira vez, Roberta queria flexibilizar a regra para se sentir confortável. Queria desfilar de macacão de neoprene, usado para mergulhar e surfar. “Vou desfilar assim, eles pedem roupa de banho, pode usar maiô e biquíni. Quem disse que isso não é roupa de banho?”, questiona.

Ela não pôde usar o macacão. Pelas regras, vestimentas não podem fugir “ao padrão e especificação determinados”. A quebra pode resultar na desclassificação. No mesmo parágrafo, a infração é posta como tão grave quanto “atitudes depreciativas e preconceituosas”.

Diante da proibição, Roberta desfilou de biquíni. Mas tão importante quanto o traje, é o corpo dentro do traje, requisito essencial para a inscrição até 2018. “Eles pediam todas as medidas do seu corpo”. Já para os candidatos a Rei, o formulário exigia menos. Os requisitos da ficha de inscrição foram atualizados no último dia 10 de abril, excluindo o registro de medidas.

O concurso

O dia do concurso é uma ode à magreza. Camille SOBRENOME, aluna de XXX da Unifesp Santos, participou a edição de 201X, ainda no seu ano de caloura. Ela conta que se sentia estranha e apática. “No dia do desfile, me maquiei em casa e separei a roupa e um lanche para comer no camarim. Chegando lá, fico sabendo que algumas meninas nem tinham comido o dia todo para ‘a pele desgrudar’ e ficar com os músculos marcados”.

Em sua experiência pessoal, Roberta Lerin relata que suas expectativas sobre a seriedade do concurso foram superadas. “A gente ouvia receitas para o dia do desfile. Evitar comer doce e gordura uma semana antes. No dia, você não pode beber nem água, senão o corpo incha. Eu pensava: ‘como alguém pode se submeter a isso?’”.  

Incômodo

Em 2019, pela primeira vez, as meninas decidiram se posicionar oficialmente contra o concurso. Considerando todo o constrangimento, a Comissão Contra Opressão (CCO) da Poli redigiu uma nota de repúdio. Além disso, escreveram um ofício à diretora da Escola Politécnica, a professora Liedi Bernucci.

A diretora se sensibilizou e enviou sua nota de repúdio diretamente aos organizadores. “Acreditamos que tal atitude distancia-se de todo e qualquer espírito esportivo que deva permear a realização desse tipo de evento”, defendeu, solicitando que o regulamento fosse revisto.

Segundo Aline Nicoleti, da CCO, a organização dos Jogos não demonstrou interesse em mudanças. “Responderam à nota da diretora falando que eles que faziam tudo e que essas são as regras. Resumidamente: quem não gostou, que não participe”.

Procurada pelo Jornal do Campus, a UNISANTA não se manifestou.