“Não consigo esperar nada, mas vamos ver se o bom senso prevalece”

Eduardo Suplicy avalia as medidas que o governo Bolsonaro tem apresentado ao campo da educação

Por Camila Mazzotto e Jonas Santana

Eduardo Suplicy recebeu o JC em seu gabinete na Câmara Municipal de São Paulo. Foto: João Paulo Falcão

Há 40 anos, em 1979, Eduardo Matarazzo Suplicy iniciava sua trajetória oficial na política enquanto deputado do estado de São Paulo. Oficial, porque, desde pequeno, tinha os olhos atentos sobre as diferenças entre as condições de vida que levava e as dos garotos que viviam debaixo do Viaduto Nove de Julho, no centro da capital paulista.

O menino Eduardo costumava observar o pai, Paulo Cochrane Suplicy, um corretor de café bem sucedido, presidir as atividades da Fundação Casa do Pequeno Trabalhador [atual Fundação Jovem Profissional], cuja missão era desenvolver em jovens de famílias menos favorecidas as habilidades necessárias para o ingresso no mercado de trabalho.

Olhar para as injustiças mundo afora acabou levando-o a estudar administração de empresas, na Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde chegou a dar aulas entre 1966 e 2012; e Economia, na Universidade Estadual de Michigan, Estados Unidos. Assumiu os cargos de senador, deputado estadual e federal e secretário de Direitos Humanos e Cidadania. Atualmente, é vereador na cidade de São Paulo.

O projeto de lei da Renda Básica de Cidadania [Lei No 10.835, de 8 de janeiro de 2004], que propõe a concessão de um benefício monetário suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, consolidou-se como a marca do político.

Quando, durante entrevista ao Jornal do Campus, soube através dos repórteres que o escritor moçambicano Mia Couto estava no país, não pensou duas vezes: chamou sua secretária e cancelou a consulta que estava marcada para a manhã do dia seguinte, a fim de encontrar-se com o amigo e ter a oportunidade de discorrer sobre uma possível instituição do projeto de renda mínima em Moçambique.

Ao JC, contou suas impressões sobre algumas das medidas que têm sido pensadas para o campo da educação sob a gestão de Jair Bolsonaro, bem como as noções que as sustentam e as expectativas para o futuro do país.

Na cerimônia de posse do novo ministro da Educação, Jair Bolsonaro indicou como um dos objetivos da pasta “uma garotada que comece a não se interessar por política, como é atualmente dentro das escolas, mas comece a aprender coisas que possam levá-las, quem sabe, ao espaço no futuro”. O que o senhor, que tem mais de 40 anos de trajetória política, acha de desestimular o interesse dos jovens pela política?

É um contrassenso. Todos nós, desde crianças, começamos a perceber o que se passa à nossa volta. Eu nasci no cruzamento da Alameda Casa Branca com a Alameda Santos, e sou o oitavo de onze filhos. Desde menino, comecei a observar as diferenças enormes presentes na cidade de São Paulo. Quando tinha uns 10 anos de idade, acordava à meia-noite com gritos de mulheres que estavam sendo espancadas porque vendiam seus corpos no Parque Siqueira Campos. Eu via elas sendo levadas para o distrito policial e, poucos dias depois, voltarem para lá. Fui estudando e percebendo essas coisas, que foram me fazendo pensar sobre o que podia ser feito para fazer do Brasil um país melhor. Então, resolvi estudar economia e administração de empresas, e aprendi essas coisas que estou realizando há anos. Me pergunto: como desestimular o interesse dos jovens pela política? O que é a política? Política é a ciência de como alcançar o bem comum, uma vida justa para todos. Para isso, se faz necessária a justiça política, que precisa ser precedida da justiça distributiva, aquela que torna mais iguais os desiguais.

O novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, é formado em Ciências Econômicas, atuou no mercado financeiro por mais de 20 anos. O que acha do Ministério da Educação estar nas mãos de uma pessoa que não tem experiência na área de gestão educacional?

No Brasil, há muitas pessoas com uma extraordinária capacitação para a educação, como brilhantes reitores de universidades e diretores de faculdades. Vamos dar um exemplo de quem considero um excelente ministro da educação: Fernando Haddad. Uma pessoa que formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo, depois fez mestrado em Economia e doutorado em Filosofia. Uma pessoa com uma formação de profundidade e que conseguiu multiplicar significativamente as oportunidades de educação nos três níveis: desde as creches, educação fundamental e secundária e, sobretudo, também no nível universitário, além dos institutos de formação técnica, com o Pronatec. O ProUni nasceu na gestão Haddad, que abriu oportunidades de educação superior para pessoas que antes não tinham. Até agora, não vi nenhuma proposta significativa deste novo ministro. Não consigo esperar nada, mas vamos ver se o bom senso prevalece.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o novo ministro da Educação defendeu que professores agredidos por alunos chamem a polícia, processem os pais e que, em último caso, “tem que tirar o Bolsa Família dos pais e até a tutela do filho”. Como avalia o argumento?

Trata-se da opinião de uma pessoa que acha que a educação acontece por meio de punições. Acho que há outras formas muito melhores de estimular as pessoas a agirem bem, assim como também considero que o armamento de professores, como defendido por membros do governo após o ataque em Suzano, não é o caminho para lidar com episódios violentos em escolas. No livro I de Utopia (1516), o grande pensador Thomas More, em uma discussão sobre o fato da pena de morte não ter colaborado para reduzir a criminalidade violenta da Inglaterra, há uma frase que eu quero muito que o presidente leia e aprenda essa lição – até mandei uma cópia do livro para ele: “Muito mais eficaz do que uma pessoa não ter outra alternativa senão a de se tornar primeiro um ladrão – para depois ser transformada em cadáver – é assegurar a sobrevivência das pessoas”. O filósofo é considerado um dos que fundamentaram o direito à garantia de renda para todos, que é um assunto que está cada vez mais presente nos debates e políticas de justiça no mundo. No Brasil, precisa ser colocado em prática o que já é lei na Renda Básica de Cidadania [Lei No 10.835, de 8 de janeiro de 2004], que propõe a concessão de um benefício monetário suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde. O presidente Jair Bolsonaro jurou cumprir a Constituição perante a Deus e ao Brasil. O artigo 3º do documento, por exemplo, diz respeito aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais. Se você quiser efetivamente atingir esses objetivos, uma solução é fazer valer a Renda Básica de Cidadania.

Foto: João Paulo Falcão

Jair Bolsonaro e membros de seu governo já fizeram uma série de ataques a grupos minoritários da população brasileira, como negros e indígenas. Acha que esse comportamento pode significar uma ameaça à recente abertura da Universidade de São Paulo à política de cotas?

Apesar de acreditar que entre estudantes e professores da USP a política de cotas seja vista com bons olhos, acho que precisamos estar preparados para afirmar a importância da medida. O Brasil aboliu a escravidão há mais de 130 anos, mas não se tomaram as providências necessárias para corrigir os efeitos dos três séculos dessa prática social. Precisamos exercitar os ensinamentos de política econômica e social que signifiquem a construção de uma nação justa, de forma que os direitos da Constituição, como a educação de qualidade, valham, de fato, para todos. O filósofo John Rawls, em Uma Teoria da Justiça (1971), por exemplo, conceitua o princípio da diferença, que diz que qualquer distinção sócio-econômica que exista na sociedade só se justifica se for em benefício dos menos favorecidos. Acredito que a política de cotas está dentro desses objetivos de promoção da justiça social. Espero que a medida permaneça na Universidade e, aqueles que somos favoráveis, vamos assim expressar a nossa opinião nos espaços de discussão política.

Quando o ex-ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, disse que alteraria a percepção da ditadura nos livros didáticos, a partir da noção de que não ocorreu um golpe em 64, mas “uma mudança de tipo institucional”, o governador Renan Filho, de Alagoas, defendeu que não adotaria a proposta. Já em São Paulo, o governador João Doria não se posicionou. Como vê a omissão do governo estadual paulista quanto aos discursos do governo federal sobre educação?

Quando Bolsonaro quis comemorar o golpe militar, o governador João Doria se pronunciou contrário à medida. Ao mesmo tempo, ele demonstra muita afinidade com as declarações e posições do presidente. Estou em desacordo com o fato dele ter condecorado os policiais que mataram onze criminosos em Guararema, por exemplo,  e com a ideia de que ‘bandido bom é bandido morto’. Nossa Constituição não legitima a pena de morte. Acredito que, por maior que seja o crime cometido, todo ser humano pode ser transformado.

No dia 9 de abril, o governo Bolsonaro anunciou que deixará de reajustar os valores do Bolsa Família neste ano a fim de criar um 13º salário aos beneficiários do programa, promessa feita em campanha eleitoral. O que achou da medida?

Seria adequado que ele também assegurasse o ajuste dos valores do programa, pelo menos de acordo com a inflação. Ao tempo da presidenta Dilma, em julho de 2014, o número chegou a 14,2 milhões e, a partir daí, foi diminuindo progressivamente, até chegar aos 13,7 milhões no governo Temer. Mas, nos últimos meses de seu mandato, Temer aumentou novamente para o nível de 14,2. Já no governo Bolsonaro, no mês de março, estava em torno de 14,1, o que dá um valor de R$ 2,6 bilhões. No entanto, poderiam receber o Bolsa Família 15,9 milhões de famílias. Para efetivamente haver um 13º condizente seria próprio que também se fizesse o reajuste dos valores. Da minha parte, defendo que cheguemos o quanto antes à Renda Básica de Cidadania.