“Se a gente escavasse o cemitério dos brancos, eles não ficariam bravos?”

Evento do MAE-USP discute outras visões sobre a arqueologia dos povos brasileiros

Por Beatriz Gatti

Aos seis anos, Jaime começou a ir à escola. Mas foi só no colegial que aprendeu português. Depois de concluir o ensino médio, ouviu de seu irmão mais velho que seria importante fazer faculdade e, quem sabe, assim como ele, se graduar em teologia.

O conselho foi parcialmente seguido. O irmão inspirou Jaime a entrar na universidade, mas em outro curso. O motivo? Cursar teologia significaria ficar muito longe de casa: “Falei para os meus pais ‘Não vou fazer teologia, não vou ser pastor. Mas eu posso ajudar com outra coisa. Eu posso registrar a nossa história’.”

Foto: Daniel Medina

Jaime nasceu e cresceu em uma aldeia de indígenas perto do rio Mapuera, no Pará. Sim, ele é indígena. Ele é Jaime Xamen, do povo WaiWai. Optou por estudar Arqueologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), sediada em Santarém. Hoje, tem 33 anos, mora em Belo Horizonte e é mestrando na UFMG.

Conheci Jaime há poucos dias. Em alguns minutos, ele tinha contado boa parte de sua trajetória. Na UFOPA, investigou vestígios da cerâmica Konduri da região dos rios Trombetas e Mapuera. Se interessou pelas figuras animais nas bordas dos vasos e se questionou: “Será que os brancos falam a verdade sobre a cerâmica Konduri?”.

Os velhos são a teoria

Para a conclusão do trabalho de graduação – que esclareceu que os desenhos na cerâmica revelavam o contato com espíritos animais –, Jaime recorreu aos mais velhos. “Para nós, os velhos são a teoria, são quem têm informação. Cresci ouvindo histórias. E é assim que a gente a transmite, pelas gerações.”

Apesar de reconhecer a importância do trabalho dos arqueólogos brancos para a resistência da cultura indígena, Xamen considera que a arqueologia indígena vai muito além de vestígios materiais.

Ao JC, ele narrou uma conversa com um Munduruku da UFOPA:  “Perguntei por que ele queria estudar arqueologia. Ele respondeu: ‘Tem uma coisa que eu não concordo que os arqueólogos fazem: escavar o cemitério dos nossos avós. Se a gente escavasse o cemitério dos brancos, eles não ficariam bravos?’ Eu respondi a ele que há várias formas de se escrever a história. Para nós, é muito diferente; isso tem que estar lá, não tem que trazer para um museu.”

Xamen é o primeiro indígena formado em arqueologia. E, por enquanto, pretende seguir na pesquisa. Durante o mestrado, visitará a primeira aldeia dos WaiWai com três pessoas que lá moravam, para acompanhar a percepção delas sobre o local a partir de seus conhecimentos históricos.

Para ele, a verdadeira arqueologia indígena tem base na história lembrada pelo próprio povo, sendo importante levar essa visão para dentro da Academia. Foi o que ele trouxe para a VI Semana Internacional de Arqueologia – organizada por alunos do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP em maio. Ele participou da mesa de abertura do último dia do evento, e explicou o surgimento dos WaiWai, além de crenças, danças e rituais.

Na mesma mesa, a fala da professora do bacharelado em Arqueologia da UFOPA, Camila Jácome, provocou: “Como vamos formar arqueólogos indígenas sem professores indígenas?”.