Com últimos cortes, ciência brasileira corre risco de amputação total

USP calcula entre 4% e 8% a diminuição de bolsas do CNPQ e da Capes

Por Beatriz Crivelari e Tamara Nassif

Cortes de bolsas de pesquisas impossibilitam avanço de estudos. Créditos: Cecília Bastos/ USP Imagens

As notícias recentes foram trágicas: em 15 de agosto, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) anunciou a suspensão de 4.500 bolsas de graduação e pós; menos de 20 dias depois, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes) atingiu a marca de 11 mil cortes, após anúncio de bloqueio de mais 5.600 financiamentos, suspendendo também renovação e substituição.

Desde o começo do ano, o CNPq alerta que o orçamento seria insuficiente para pagar 84 mil bolsas vigentes. O dinheiro acaba neste mês. O Conselho precisa de 310 milhões de reais.

A Capes tratou os cortes como congelamento. Oficialmente, a medida representará economia de 37,8 milhões. O critério do bloqueio? Manter bolsas ativas e bloquear as que seriam concedidas.

De acordo com o Pró-Reitor de Pós-Graduação da Universidade, Carlos Gilberto Carlotti, 6.063 pesquisadores da USP recebem financiamento da Capes, entre mestrandos e doutorandos; outros 5.649, do CNPQ (professores, alunos de graduação e pós). A Universidade calcula que entre 4 a 8% dos bolsistas serão afetados pelos cortes.

Considerando este cenário, o Jornal do Campus buscou pesquisadores da USP para relatarem suas experiências e o impacto do corte de bolsas em suas carreiras acadêmicas. Apesar das múltiplas vivências e ramos de pesquisa, os cinco entrevistados têm em comum a angústia de um futuro incerto para trabalhos de anos. Seus nomes reais foram preservados.

Gráfico: Maria Eduarda Nogueira
Gráfico: Maria Eduarda Nogueira

Alguns alunos

Luiz:

Doutorando em Sociologia, Luiz estuda há três anos os impactos do agronegócio em Sorriso, MT. Em seu quarto ano como bolsista do CNPq, não sabe como vai fechar as contas, caso seja mantida a perspectiva de não receber as parcelas da bolsa de novembro e dezembro. “Eu recebo R$ 2.200,00 por mês. Sou pai, tenho um bebê de dois anos e vivo na cidade de São Paulo. Isso já é um valor irrisório, mas esses cortes vão me quebrar as pernas de uma forma bem dramática, a ponto de inviabilizar meu cotidiano”, disse ao JC.

Em seu departamento, é permitido que pesquisadores trabalhem na docência de ensino fundamental e médio e, com sorte, Luiz é um dos poucos com certa estabilidade, ainda que pequena. Quando perguntado sobre as possíveis mobilizações contrárias aos cortes, disse que o movimento de pós-graduandos existe, mas é pontual e “tem o alcance de uma formiga”. Fazem reuniões e debates com representantes de entidades estudantis e panfletam, mas a mobilização é mais massiva quando se ancoram a grupos estruturados, como secundaristas e ambientalistas.

Mesmo que pouco articulados, Luiz sente que “esse é o momento de silêncio que precede o esporro. Esse acúmulo de tensão não tem para onde extravasar e não encontra forma, mas não tenho dúvida alguma que vai. Não tem como aguentar a desigualdade em um ritmo acelerado, dar declarações que são corrosivas para sua própria base e explicitamente desmantelar aparelhos públicos de pesquisa sem que isso tenha consequências”.

 

Marina:

Marina é doutoranda de História Social há três anos e foi afetada pelos cortes na Capes. “Tive a confirmação de que eu receberia bolsa na sexta-feira, 30 de agosto. Na segunda de manhã eu recebi o contrato e, à tarde, veio a notícia dos cortes. Na terça, a confirmação de que não a teria. Me senti paralisada. Dá uma sensação de impotência absoluta”, contou.

Ainda que consiga terminar seus estudos a duras penas, sente como se não tivesse qualquer perspectiva de futuro na vida acadêmica inviabilizada. “É um cenário lastimável. No dia seguinte dos cortes, vi no Facebook algumas empresas privadas anunciando créditos de financiamento. É muito nítido o projeto: não é por falta de dinheiro, é um desmonte da ciência, de valorização da iniciativa privada”, acrescentou.

 

Aline:

Bolsista do CNPq, Aline faz doutorado na área de Sociologia e estuda a produção e a circulação de uma determinada ideia sobre universidade pública, principalmente nos grandes jornais do país. O foco da pesquisa é o que a motiva a continuar: “Mesmo que eu tenha que trabalhar, eu não pararia a minha pesquisa porque, com esse tema, eu acredito ser uma resistência minha continuá-la”. Ainda assim, afirma sentir-se aterrorizada com o cenário atual. “Pessoalmente é péssimo, porque eu estou há mais de dez anos dedicando minha vida à pesquisa, que demanda esse tempo. Eu não saberia onde me encaixaria no mercado de trabalho, nem o que ele exige”, afirma. Aline acredita que a universidade deixou de se preocupar em mostrar sua importância para a sociedade e, como a pesquisa e a ciência são produzidas nesse ambiente, há uma falta de entendimento do público dessas áreas. “Fala-se muito mais da importância de não desmatar e não queimar do que da importância da ciência. As universidades e associações científicas deviam tomar essa luta para si e irem atrás de estratégias para se tornarem mais presentes no cotidiano das pessoas”. Para ela, se a situação continuar do jeito que está, irá ocorrer uma elitização da ciência e, num cenário mais pessimista, “vai acabar a ciência no Brasil. E isso significa acabar com o futuro do país, com a chance de não depender de tecnologias do exterior e com as possibilidade de se pensar além do senso comum. É absurdo”.

 

Lígia*: 

“Esse corte não é só na minha pesquisa, é um projeto de governo. Tem que ser uma briga da educação, não só da pós-graduação, porque, ao cortar as bolsas, a entrada de outras pessoas na vida acadêmica deixa de ser uma escolha possível”, afirma Lígia, doutoranda de Educação Física na EEFE pelo CNPq. Apesar do corte dificultar o andamento de sua pesquisa, ela diz que a frustração maior é a injustiça: “O que teria acontecido se não tivesse tido verba no surto de Zika? A gente não estava no Nordeste, não era a gente lá. A falta de pesquisa afeta toda a saúde de uma população que, na grande maioria das vezes, não pode nem se defender. Isso é o que mexe mais, é uma revolta muito grande”.

 

Ana*:

Graduada na UFScar e doutoranda de Filosofia na FFLCH pelo Capes, Ana conta que, ainda que sejam históricos os problemas nas universidades, o que se tem hoje não é por uma questão meramente financeira. “É ideológica. Eu estudo um cristão e me sinto uma subversiva fazendo pesquisa em Filosofia. É quase criminoso”, conta ao JC.

Além disso, o desmonte na educação é pauta que, para ela, precisa ser vista com mais seriedade: “Que a minha bolsa seja paga, que eu termine o doutorado. A gente tá falando de ciência, e ciência não se faz só com a minha pesquisa. O elo quebra e ela é atacada frontalmente. Ciência precisa de continuidade, de gente estudando coisas diferentes”.

*Nome fictício