O ano é 2019 ou 1969?

Não é de hoje que cortes de verba e censura dificultam produção audiovisual apoiada pela Ancine

Por Marcelo Canquerino

Arte: Lígia de Castro

Os ataques à cultura tornaram-se cada vez mais constantes desde o começo do governo Bolsonaro. Um dos principais alvos, a Ancine (Agência Nacional do Cinema). No dia 31 de agosto, por exemplo, o presidente disse que queria uma pessoa extremamente evangélica para comandar a Agência – ela precisaria saber “recitar 200 versículos, ter uma Bíblia embaixo do braço e o joelho ralado de ajoelhar no milho”, comentou em tom de brincadeira, talvez mais sério do que parece.

Para Rubens Rewald, professor do curso de audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da USP, os cortes que a Ancine vem sofrendo impactam burocraticamente as produções. “A Agência está emperrada e vários projetos estão parados. Muitas produtoras estão fechando. É muito triste, pois diversos filmes estão prontos para estrear, mas o dinheiro para distribuição está preso.”

O financiamento público garante a continuidade da indústria audiovisual brasileira. O dinheiro da Ancine é gasto na produção e salário de diversos profissionais. Rewald explica que esse dinheiro aquece a economia, pois grande parte dos lucros voltam para o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), destinado ao desenvolvimento da cadeia produtiva do audiovisual no país.

Profissionais que trabalham no setor estão sentindo os efeitos dos cortes de verba. Sérgio Roizenblit, diretor e proprietário da produtora Miração Filmes, conta que muitos editais de financiamento para televisão e cinema foram fechados, representando queda real em seu volume de trabalho. Ele precisou demitir funcionários. “Tive que entrar em produção sem ter clareza sobre recursos para a finalização. Muitos filmes foram cancelados.”

Censura por preconceito

Dez dias antes da declaração de Bolsonaro sobre o perfil evangélico desejado para a Ancine, um edital da mesma Agência destinado a filmes LGBTQI+ para TVs públicas foi suspenso. A portaria que veta o edital foi assinada pelo Ministro da Cidadania Osmar Terra.

A suspensão motivou o pedido de demissão de Henrique Pires, secretário especial da Cultura. Pires se colocou a favor da liberdade de expressão e optou por abandonar o cargo por não estar alinhado, nesse sentido, aos pensamento de Osmar Terra e Bolsonaro. 

Uma semana antes, o presidente havia criticado, em live no Facebook, algumas produções inscritas no edital cancelado, como o filme Afronte, de Bruno Victor Santos e Marcus Azevedo, que conta a rotina de LGBTQI+s do Distrito Federal. A produção foi inscrita com a perspectiva de virar série. Transversais, de Émerson Maranhão e Allan Deberton, sobre a vida de cinco transgêneros do Ceará, também foi alvo de Bolsonaro.

Deberton explica que o projeto estava inscrito em uma modalidade específica do edital, para conteúdos com foco em diversidade de gênero. “Atendemos a este critério, com um excelente projeto. Mas o presidente não acha importante falarmos deste assunto. Ele não quer que motivemos as pessoas, as minorias, nesta discussão, não quer que histórias de superação sejam contadas, histórias de força, de amor, de conquistas.”

 

Demissão do ex-secretário especial da Cultura: o que isso diz? 

A demissão de Henrique Pires, agora ex-secretário especial da Cultura, após a suspensão do edital de filmes com temática LGBTQI+ revela muito sobre o período que a cultura e a arte vivem atualmente no Brasil. Chegar ao nível de pedir demissão por não concordar com a falta de liberdade de expressão e a censura vindas do próprio governo é, no mínimo, alarmante. 

Atualmente, organizações conservadoras estão em contato com o governo federal para discutir políticas de cinema. Um dos grupos mais atuantes, a Cúpula Conservadora das Américas, busca promover nos filmes símbolos nacionais, a preservação da família, valores conservadores e o patriotismo. Qualquer temática que fuja desse escopo, para eles, não deveria ser financiada com dinheiro público.

A propósito: quem assumiu o posto de secretário especial da Cultura foi Ricardo Braga, economista que nunca teve experiência na área cultural.