Qual é o gênero do Jornal do Campus?

 

Por Gean Gonçalves

Entre as transformações recentes do jornalismo e das rotinas de trabalho, viu-se o nascimento de novas posições e funções, é o caso do editor do público e do editor de engajamento. Pessoas que passam a pensar a relação com o público e as críticas, que online, tomam uma proporção que as cartas de leitores não tinham no passado. No entanto, chama-me a atenção uma experiência recente nos jornais dos Estados Unidos, com replicação em outros veículos de imprensa: trata-se da figura do editor de gênero.  

No fim de 2017, o jornal norte-americano The New Yorker Times anunciou o cargo, que a partir dali seria ocupado pela jornalista Jessica Bennett. A editora é responsável por suscitar discussões sobre gênero na publicação e atrair novos públicos. Ela foi escolhida para ocupar a função após a consulta de 300 candidatos. 

Atualmente, a principal atividade de um editor é a curadoria da informação, ou seja, na cacofonia da comunicação, ela ou ele é responsável por renovar o pacto de leitura com o público, pela seleção dos assuntos de relevância para compreender o presente. 

Nesse sentido, o editor de gênero, além da curadoria, parece acolher as demandas contemporâneas de reconhecimento das diferenças (os feminismos e as lutas LGBTQ) e compreender o papel delas para a transformação das desigualdades culturais, as estruturas de gênero que produzem explorações, precarizações, marginalizações e privações de direitos. 

Em maio de 2018, essa tendência foi assumida pelo jornal espanhol El País que designou a jornalista Pilar Álvarez para a função. Nessa redação, ela tem como missão ser uma vigia da informação de modo que a garantir o equilíbrio na presença de homens e mulheres nas notícias, bem como a relevância de pautas sobre feminismo, sexualidade e saúde pública da mulher. 

A leitura de gênero é um modo de pensar as histórias. Significa escrever sobre feminismos e o papel da mulher na cultura, na política e na economia, mas também é um modo de explorar narrativas sobre masculinidades, sexualidades e fluidez de gênero. Pode ser ainda uma lupa para raça, classe e demais marcadores sociais da diferença.  

Que me perdoe o ombudsman, mas o editor de gênero desencadearia uma postura de não justificar os erros perante o público, mas de instigar uma postura diferente por parte de jornalistas e da própria empresa jornalística. De ter mais atenção pelo tom dado às narrativas, aos aspectos éticos e estéticos: por quem está escrevendo, por quem é fotografado, quem são as fontes e os especialistas consultados. 

No Brasil, esse desejo de ampliar a pluralidade, é expresso, por exemplo, na recente decisão da Folha de S. Paulo de criar o cargo de editora de diversidade. A posição foi assumida pela jornalista Paula Cesarino Costa, que foi ombudsman do jornal entre abril de 2016 e maio de 2019. A ideia do periódico de maior circulação nacional é não só promover o equilíbrio de gênero na equipe do jornal e no conteúdo produzido, mas abraçar a variedade brasileira que inclui aspectos de gênero, raça, origem étnica, classe social, deficiência, orientação sexual, idade e inclinação política. 

É certo que essa função busca reparar um problema histórico do jornalismo e de nossas sociedades, mas ela gera uma dúvida: os estudantes de jornalismo estão atentos com essa tendência? Como é o jornalismo praticado pelas novas gerações? Talvez, uma possível resposta esteja nos jornais-laboratório das universidades.     

É sem dúvidas nas primeiras práticas do jornal, quando os participantes não se fecham na vaidade de expor suas visões e ideologias ao mundo, que os estudantes de jornalismo encontram um modo próprio de atuação, demarcam uma autoria, reexaminam os legados da profissão.   

O JC, tradicionalmente, escuta as opiniões de um jornalista experiente que é a pessoa convidada a ser o ombudsman da turma que produz o jornal por um semestre. Um editor de gênero ou de diversidade ainda não existe na publicação. É aqui que está a ousadia desta crítica de mídia que os professores do jornal, gentilmente, decidem publicar: um jornalista externo, sem o devido convite, atreveu-se a ler as cinco primeiras edições de 2019 (antes do especial de número 500, aliás parabéns!) com a ótica das representações de gênero. 

Espero que esse seja um exercício didático-pedagógico, que estimule os futuros jornalistas a desenvolver internamente a capacidade e o compromisso de reconhecer no mundo as desigualdades de gênero e as políticas da diferença. A turma de jornalistas que produziu essas edições do JC é composta majoritariamente por mulheres, elas foram 22 frente a seis homens. Equipes femininas no jornalismo são uma constante da atualidade. Segundo pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e da Universidade Federal de Santa Catarina, as mulheres representam 63,7% do mercado profissional. 

Apesar disso, são majoritariamente mulheres brancas, jovens, solteiras, de classe média, comporem os postos de trabalho no jornalismo, conforme dados da Fenaj. Elas permanecem ganhando menos que os homens e ocupando menos postos de liderança: são maioria nas faixas salariais mais baixas e minoria nas faixas mais altas. No caso do JC, as posições são rotativas e não há remuneração, desse modo, as jovens jornalistas ocuparam mais 90% das posições de liderança (em quatro das cinco edições, elas foram responsáveis pela posição mais alta: a secretaria de redação), assim como foram majoritariamente repórteres com textos assinados. 

Se há a máxima de que as mulheres dominam as redações, mas não mandam, isso não se aplica ao Jornal do Campus. A produção jornalística costuma ser demarcada por uma cultura masculina, ou seja, as concepções sociais de gênero permeiam os modos de construir o que é notícia e a elaboração das reportagens. Para perceber tais distinções é necessário observar os enquadramentos, as seleções e demais escolhas que marcam o conteúdo produzido. 

A primeira surpresa é que três de cinco capas do JC trouxeram fotografias de mulheres: “USP quem te viu, quem te vê” (n. 494), “HU: quanto tempo mais de espera?” (n. 496) e “Educação para quem? Idosos ocupam seu espaço na USP Aberta à Terceira Idade” (n. 497). É a jovem negra que ingressa na universidade, as idosas que participam de disciplinas regulares do mais célebre programa de extensão da USP e a senhora residente das comunidades ao redor da cidade universitária que enfrenta problemas para ser atendida no principal serviço de saúde da universidade. 

As mulheres são o personagem comum do JC, as protagonistas das principais reportagens, quem é ouvido para contar sobre situações precárias (das condições da ponte Cidade Universitária, suspensão do Passe Livre, infraestrutura da USP, ausência de docentes). No entanto, os homens são os mais convidados a falar na condição de fonte especializada, de professores a autoridades. Entre os destaques, a seção de entrevistas trouxe apenas homens. Thiago Torres, o chavoso da USP, foi o que mais contradiz à imagem típica de masculinidade e intelectualidade construída pelo jornal, como é possível notar, por exemplo, com as entrevistas do político Eduardo Suplicy e de Caio Amore, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. 

A escolha de Eduardo Suplicy para avaliar o governo Bolsonaro revela os modos como os jovens jornalistas ainda observam os atores políticos. Em um cenário no qual Suplicy não é mais um dos protagonistas da política, a escolha parece antiquada e conservadora. Novas fontes devem ser exploradas pelo jornalismo, ainda mais em um momento de efervescência com mais mulheres na política, vide a deputada estadual Erica Malunguinho, primeira mulher transexual eleita na Assembleia Legislativa de São Paulo; e com novas práticas políticas em construção, como o mandato coletivo da Bancada Ativista.     

Dos textos jornalísticos com pautas com enfoque de gênero, foi interessante identificar a reportagem sobre construção social da masculinidade e a cultura da vioncia e do armamento. A repórter trouxe uma compreensão pouco apresentada nos jornais hegemônicos quando se aborda a questão da posse de armas: o poder de matar e ferir como componente da virilidade e do masculino. Além do que narrar histórias com enfoque de gênero é abordar a construção do homem.  

O JC apresentou ainda um texto sobre o ex-aluno da medicina acusado de seis estupros durante a graduação (n. 497) e a matéria “Confissões de um concurso de beleza em crise” (n. 497), ambas com fortes vestígios sobre a exploração do corpo da mulher, a questão dos assédios e das violências sexuais. Na mesma edição, o periódico abriu espaço para apresentar a história de uma aluna da medicina que recebeu um “troféu masculino” em uma competição de xadrez, cuja distinção em categorias é o torneio “absoluto” e o “feminino”. O que revela práticas de gênero no esporte que mais desqualificam as mulheres do que incentivam a participação delas. 

Essas reportagens se complementam com os textos da edição 498, onde se fala do atendimento na USP às vítimas de violência sexual, por meio do trabalho do USP Mulheres, das Comissões de Direitos Humanos das unidades, dos serviços da Assistência Social, do Hospital Universitário e do Instituto de Psicologia da USP; sobre o cenário precário das creches da cidade universitária (direito fundamental às mulheres e às crianças); e sobre o número reduzido de professoras e alunas na matemática, informação dada em virtude da celebração 12 de maio, Dia da Mulher na Matemática.  

Entre as autorias criativas do jornal, há de se destacar a reportagem com moradores do Crusp (n. 494). Uma reportagem com vozes compiladas, não há identificação do nome ou gênero de cinco estudantes que enfrentam más condições do espaço de moradia. Em contraponto, na edição seguinte se fez ouvir as especificidades das mulheres que vivem no Crusp e a falta de segurança para elas e as situações de vulnerabilidade (n. 496).  

Reflexões em torno dos aspectos de gênero se fizeram presente com uma reportagem com relatos anônimos de pessoas trans que sofreram transfobia na USP (n. 498), do desrespeito a agressões físicas, e com a crônica “Zoom Out” (n. 496), um relato inventado, mas com a mais crua violência homofóbica frequente nas páginas criminais dos jornais. 

Diante de todo o material jornalístico, as jovens e os jovens jornalistas do Jornal do Campus parecem bastante aptos a uma leitura de gênero da comunidade que estão inseridos e podem ajudar a universidade a ser um ambiente melhor. Com criatividade estética e tratamento ético, muitas vezes, colocaram os dilemas das mulheres em centralidadeo que vai da busca por igualdade e inserção até o enfrentamento de violências de gênero.  

Com certa brevidade, corpos negros e corpos LGBT aparecem na cobertura jornalística do JC, o que caracteriza ao menos uma postura de mudança nas narrativas e representações do jornal que deve ser crescenteEspera-se que cada vez mais se construa olhares sobre racismo, sobre as sexualidades dissidentes e sobre a masculinidade no jornalismo, tudo isso se relaciona com gênero (que não pode ser diminuído para a experiência da mulher) 

Os jornalistas do JC estão no rumo certo na seleção das pautas, mas não podem abusar do anonimato das personagens para fazer denúncias. Se é possível recomendar algo aos repórteres, é que se atenham a voz do personagem do cotidiano do mesmo modo que se registra com prestígio a voz de quem tem um saber técnico-científico. Pluralizem essas vozes e as posições dadas a elas, desconfiem das convenções da cultura jornalística. É por esse caminho que o jornalismo contribui com a percepção e o alargamento sobre os sujeitos que socialmente dizemos que importam     

Gean GonçalvesJornalista e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da ECA-USP, onde desenvolve pesquisas sobre jornalismo, gênero e sexualidade; bolsista do CNPq sob orientação de Cremilda Medina, professora sênior do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE).