Da porta pra fora…

Semana de mulheres do Crusp reúne vozes femininas que contam sua trajetória de organização até hoje 

Por Ana Gabriela Zamgari Dompieri e Daniel Terra


A semana do XAMA ELA AÍ  aconteceu entre os dias 16 e 23 de outubro no Crusp. O evento foi organizado por membras e parceiras do coletivo de mulheres da moradia.  Contou com diversas atividades, incluindo: palestras, mutirão de atenção jurídica, aula de forró, de defesa pessoal, oficina de arteterapia e mais. 

A organização feminina começou a tomar corpo em 2015, quando moradoras do Crusp perceberam que tinham pautas em comum, como permanência, segurança e a falta de escuta e assistência institucional. Elas começaram como um grupo pequeno, no âmbito privado, e hoje vêm a público convidar mais mulheres para se unirem no evento e fora dele. 

A construção da seguinte matéria buscou ecoar diferentes vozes de mulheres que compartilharam algumas vivências sendo parte desse movimento. Cedendo a elas a palavra, o jornal selecionou e organizou trechos dos relatos a fim de retratar uma narrativa em comum.


O movimento estudantil e o movimento das mulheres não começaram ontem. Não começou em 2016, ele não começou quando eu nasci. Ele começou desde que as mulheres existem. Desde que o mundo existe dessa forma as mulheres revolucionaram e revolucionam. Então eu acho que esse movimento acontece com possibilidade dessas mulheres se reunirem, ou não. Dessas mulheres terem que estar numa lida diária para poder pagar seu aluguel, viver, comer, cuidar dos seus filhos, cuidar de si, da sua saúde mental e fazer o movimento. Percebo que são ondas. Às vezes tem muita mulher, às vezes pouca, mas a gente tá de mãos dadas. 

A aula de forró proporcionou um momento de descontração entre as participantes do evento. Crédito: Daniel Terra

A gente tá em 2019 — foi em 2015. A minha casa era um lugar que juntava muitas mulheres no Crusp. Todo mundo passava pra tomar um chá, um café. E aí teve alguns encontros em que a gente foi fazendo uma rede de amizade mesmo.

Depois teve um evento, um dia catalisador, quando aquele cara escreveu aquele blog Como estuprar mulheres na USP. Aí aconteceu o primeiro ato auto-organizado das mulheres. Tinha umas 200 pessoas, foi grande, tivemos vários tensionamentos, mas passamos dentro da FEA, da FFLCH, descemos por um pedaço do Crusp. Foi bem complicado, porque as instituições estudantis não entendem a necessidade política das mulheres se auto-organizarem para fazer um ato, parar a rua. Os motoristas não respeitavam, vinham pra cima e a gente segurava cabos de bandeira pra parar o trânsito aqui pra descer pra portaria. A gente terminou o ato e voltou pra casa pra pedir pizza, esfiha, fazer um lanche. Ficamos todo mundo comendo e conversando lá. 

Eu lembro que estava preparando o chá e estávamos em umas 7, 8 mulheres, algumas que já moravam no corredor, e a conversa começou a ir; e uma amiga falou assim ‘ah, acho que eu fui agredida no Crusp’; ‘ah, acho que eu também’; ‘acho que eu também’. E aí rolou aquela conversa em que é sempre muito difícil desnaturalizar essas agressões que a gente sofre aqui, é tudo levado com muita naturalidade. 

E na verdade é difícil começar a perceber. Eu acho que o importante de estarmos em contato, conversarmos e nos conhecermos, é até mesmo começarmos a perceber a recorrência das nossas histórias, porque às vezes a gente acha até que está louca!

Havia então um grupo de mulheres minimamente organizado se reunindo. Nós nos reuníamos em apartamentos fechados, na sala de vídeo, tínhamos medo dos agressores, da retaliação dos caras. Quando a gente se reuniu aqui, que a gente tava sentada ali, em roda, uma roda de mulheres, as pessoas passavam e ficavam olhando muito curiosas o que tava acontecendo ali. Foi a primeira vez que a gente tava em um lugar mais aberto.

A gente tava percebendo um ciclo: convivemos com agressores na moradia, por exemplo. E a gente convive com agressões que não necessariamente tem a personificação em uma pessoa. É muito complicado tentar nivelar violência, o que é mais sério, o que é menos sério. Entendendo como estrutural, tudo isso afeta esse corpo. Dentro desse ambiente de duas mil pessoas, só existem 12 vagas destinadas para mães. E as mães não podem participar do processo seletivo comum. O que não acontece com pais. Inexistem protocolos de atendimento de violência de gênero na USP. Não existe sequer orientações como: professor não pode assediar aluna. Não existe do mais sutil, nem ao mais sólido. 

A organização das mulheres já estava caminhando pra uma cobrança institucional forte e contundente. A ocupação do SAS de 2016 foi uma das estratégias usadas, entre outros instrumentos institucionais. Houve esse fortalecimento, a procura institucional e o silenciamento dessa procura, o que culminou na primeira ocupação de violência de gênero no Brasil em universidade, que durou um mês e teve muita força política e poucas mãos, na verdade, foi a primeira ocupação que teve conciliação dentro da USP.

A gente ocupou e o SAS/USP entrou com um pedido de reintegração de posse. Esse pedido foi negado e foi solicitada uma audiência de reconciliação. Nela, a gente conseguiu algumas das nossas pautas, que eram a abertura de vagas nas creches em sua capacidade completa, vagas para mães, a formação de uma comissão, que seria autônoma e teria fornecimento de documentos pela USP,  e a reabertura dos processos engavetados pelo SAS, além da não punição dos ocupantes. Tivemos aulas abertas também nessa ocupação, com a Marilena Chauí, a Djamila Ribeiro e a psicanalista Maria Rita Kehl.   

Mulheres fazem exercício de autorretrato com argila no térreo do Crusp. Crédito: Ana Gabriela Zangari Dompieri

Através da audiência de conciliação, a gente conseguiu a legitimação de uma comissão autônoma para analisar os casos de violência doméstica e de gênero na moradia estudantil. A gente analisou o aparelho institucional: viu quantas denúncias foram levadas até o fim, quantas geraram sindicâncias, processos administrativos. A gente fez um dossiê com denúncia de mulheres que foram chegando e o número de denúncias que a gente tem é completamente diferente dos números que a assistente social apresenta — 17 denúncias ao longo de 10 anos. É um número baixíssimo, nem corresponde com a realidade brasileira e o Crusp está dentro da nossa sociedade. 

A gente não tem corpo pra ser uma comissão aberta para denúncias. Sou eu enquanto moradora amparando outra mulher. E é em rede mesmo. Às vezes a pessoa precisa de dormir em um lugar, precisa de um colchão, que faça uma comida, ajude a lavar roupa, que vá na delegacia da mulher junto pra tentar fazer um boletim de ocorrência, que procure advogadas – e temos advogadas parceiras que nos instruem no que tem que fazer. São coisas muito simples que já dão amparo.

Eu sinto que elas veem que a gente dá conta então ‘ah, dá conta mesmo’. Ah, então vai existir essa comissão autônoma, então essa comissão vai dar conta de tudo. Nós não somos profissionais, somos pessoas morando e tentando permanecer nesse espaço inclusive pra se auto acolher. Não tem que cair sobre nós tanto o peso. Até acho que a gente dá conta. Mas não é porque a gente pode que não tem uma instituição que tem uma verba de milhões pra zelar por esse espaço.