Encontro com o escritor Pepetela vale cada pergunta e resposta

Angolano participou do Áfricas em Trânsito, na FFLCH-USP, e falou sobre sua obra publicada ao redor do mundo

Por Mariah Lollato

Pepetela em sessão de autógrafos de Mayombe, na FFLCH-USP. Crédito: Mariah Lollato

A barba branca na pele branca talvez digam algo sobre o escritor africano. Ou não. Pepetela pegou em armas enquanto escrevia. Se formou sociólogo quando pode, depois de ingressar em engenharia por escolha de seus pais. 

Porque vai me ajudar a conhecer a sociedade sobre a qual vou escrever. A sociologia nunca foi um fim em si, a literatura é que foi. 

Com quase 80 anos, jura de pés juntos que ainda não produziu sua obra mais importante. Se uma pessoa escreve um livro e acredita que ele foi o principal, então por que arriscar outro?

O escritor se refere a uma das organizadoras como alguém que lhe acompanhou fazendo perguntas, enquanto ele ia inventando respostas. Gosto de quem se assume inventador de respostas. Apropriadamente, a plateia enviava os questionamentos, que eram lidos pela professora. Qual a importância da literatura hoje?

Veja bem, há muito tempo era a única forma de divulgar valores. Por isso eu digo: talvez tenha sido mais importante antes. Mas eu acho que continua fundamental. Não porque resolva problemas. Não acho que tenha que resolver. Tem é que equacionar, colocar questões à sociedade, chamar atenção para o que se passa, preparando as pessoas para atuar de acordo com seus valores. Isso continua. 

Resposta gostosa de ouvir. Não deixamos de ser meninos de olhos brilhantes, ouvindo coisas bonitas sobre o mundo. Espero que não. 

Desde a chegada, vários exemplares de Mayombe ocupavam as cadeiras  autógrafo de Pepetela não é coisa pouca. Perguntam-lhe se ele se identifica com algum dos personagens do livro

Bem, eu acho que nunca há uma identificação total do autor com um personagem. Pode haver uma identificação parcial com alguns ou com todos, mesmo aqueles que o próprio autor critica, há sempre uma identificação qualquer. Agora, no caso de Mayombe, não, eu não me identifico. As pessoas muitas vezes me identificam, me veem num personagem, no outro, mas realmente eu não vejo.

Questões pessoais que não cabem aqui. Alguém insiste: os personagens foram inspirados em seus companheiros de guerrilha?

Vou contar uma história que é absolutamente verdadeira. 

Então Pepetela relembra que, quando o livro Mayombe saiu em Angola, muitos dos guerrilheiros estavam vivos. Eles haviam participado da primeira missão narrada na história. Foi quase aquilo; em verdade foi mais rico, algumas partes acabaram cortadas na edição. Os personagens é que não eram os mesmos. Mas os companheiros discutiam quem seria quem. Organizaram um jantar e o convidaram a participar.

Quando puseram a questão, afinal dar o nome aos bois, eu disse ‘bom, vocês não estão nesse livro. Muita pena, mas vocês não estão nesse livro’. E virei para o que era comandante na altura daquela operação: ‘E tu não és o Sem Medo, se estás a pensar isso’. E ele disse: ‘Não? Mas eu parti do princípio de que eu era o Sem Medo, não sabia era o nome dos outros’. 

Pepetela conta que os companheiros todos eram alfabetizados, alguns possuíam ensino médio e outros, superior. Mas não tinham dimensão de que a ficção existia, da fábula que guarda fato em sonho. Sua obra registra a memória de Angola. Hoje, no Brasil, há uma disputa pela apropriação da memória coletiva. Como lutar contra o revisionismo histórico farsante? 

Eu penso, em minha qualidade de escritor, que a literatura tem que lutar contra isso ajudando a repor a verdade. É bom que os escritores peguem em temas que estão a tentar ser revistos e baseiem algum livro nessa ação. Agora, os intelectuais têm que repor a verdade. E se sai um livro considerado revisionista por alguém, há que responder com três, dez, vinte livros. Penso que é assim que se repõe as coisas.

É preciso ter uma fé enorme para poder suportar sempre tudo. Em uma das entrevistas que li, Pepetela dizia ser o homem a dele. E em que deposita sua fé hoje? 

Eu acho que ainda consigo depositar alguma fé na juventude. A minha geração já passou à história. A que vem a seguir é pior do que a nossa, porque está aí no mundo fazendo o que está fazendo. Portanto talvez a juventude ainda salve o mundo. Se não for a juventude a salvar, eu não sei.

Autor escrevia para enxergar a realidade na guerra

Desde que entrou na sala do encontro na FFLCH, Pepetela chamou atenção pelo sorriso calmo. É de se impressionar que quem tenha participado de guerra carregue expressão tão gentil.

O romance Mayombe foi escrito entre 1970 e 1971, durante a guerra colonial contra forças portuguesas, quando Pepetela era guerrilheiro do Movimento Popular de Libertação de Angola.

A resposta que deu à pergunta de como produziu o livro, de tão rica, merece atenção especial:

Mayombe quase todo foi escrito assim. Normalmente à noite, porque era a única altura livre, em que estávamos com toda tranquilidade, porque à noite não era possível entrar naquela floresta. E era uma lamparina com uma luzinha qualquer que dava iluminação. Era difícil certamente, fisicamente era difícil, escrever à mão. Mas era muito importante para eu compreender o que se passava constantemente e ir analisando. No fundo, a ficção ajudava a compreender a realidade. Eu sempre disse que escrevia para aprender. E é um fato isso. Continua a acontecer. Havia os aspectos materiais, práticos, por exemplo: era escrever e imediatamente embrulhar o que estava escrito em um plástico. Na época, o plástico não era tão abundante como hoje. Hoje é demais, é demasiado. Naquela altura ainda faltava. De maneira que eu guardei por acaso um saco e na altura em que comecei a escrever lembrei: mas aqui chove todas as noites, por todos os dias, chove constantemente, como preservar isso? Sobretudo, como preservar de algum ataque? As bases eram muito temporárias, nós estávamos sempre prontos para abandoná-las. Portanto, e os papéis, onde é que ficavam? Tinha que arranjar algum sítio, um buraco que só eu soubesse onde é que estava, e depois meter lá o que ia escrevendo. Essas eram algumas dificuldades práticas que acontecem escrevendo na guerra. De resto… Uma outra questão que era importante para quem — não sei se alguém aqui quer escrever em situações de guerrilha — é tentar preservar o braço que escreve. Pensar sempre nisso.