Não vai ser nossa última festa

Por Giovanna Stael

Crédito: Giovanna Stael

“É a última festa deles, Bolsonaro vai ganhar”. Era 19 de outubro de 2018, dia da Peruada, festa dos alunos da faculdade de Direito. Há uma semana do segundo turno das eleições, eu e alguns queridos éramos recebidos com tal comentário de um homem que ridicularizava nossos adereços na saída da estação da Sé. Com recém completados 20 anos de sonho e de América do Sul, eu sonhava e engasgava. 

O sonho: meu primeiro aniversário na cidade. O engasgo: um imbecil irresponsável liderando as pesquisas de intenção de voto, uma onda neofascista em boa parte do mundo, e claro, todos os outros pesares que tantos ombros suportam os meus não, sou uma das sortudas. 

Agoniada frente à certeza de viver um período histórico sombrio, escolhi seguir, talvez pateticamente, a massa de universitários tão privilegiada quanto eu. Vi como saudável beber cerveja na tal “passeata política-etílica-carnavalesca”, segundo a definição dos anfitriões do Largo São Francisco. Um dia de cantar e dançar as essências humanas e beber para lembrar. Ou, para alguns, mais uma festa elitista de jovens desocupados.  

Eu entendo a opinião pública. De verdade, de coração. Imagino Pedro Pedreiro esperando o trem e vendo o centro da cidade parar com o bando de universitários que podem ficar bêbados numa sexta-feira. Eu sei. Hoje, minha amiga chorava a desigualdade social, chorava o celular perdido, chorava por saber que parecia estúpida ao lamentar a sociedade. Veja bem, eu garanto, com testemunho vivo, que dá pra chorar muita tristeza diferente no mesmo choro. 

Eu choro pelo afeto que falta no mundo, pela estrutura social injusta ou pela contradição do meu próprio chorar? As lágrimas pesam mas parecem injustificáveis vindas da porcentagem mais privilegiada da população de um país onde a desigualdade social atingiu o maior nível desde 2012, segundo o IBGE. 

Às vezes é difícil viver os dias, por mais que os meus sejam tão, mas tão mais fáceis que os de Pedro Pedreiro. E veja só, Chico mesmo cantava que, sem a cachaça e um carinho, ninguém segura esse rojão. E eu queria — ou quero?  — mudar o mundo. E eu entendo o olhar de desaprovação das janelas para a massa colorida e suada, e eu entendo que você pode não ver tanto sentido que eu use esse espaço para defender a balbúrdia. E eu peço licença com toda a educação que não me faltou. 

Hoje é 18 de outubro de 2019, e novamente escolho botar meu bloco na rua. Estou na Peruada, e às vezes quando eu olho pro lado nada faz sentido, mas a falta de sentido me eletriza, em meio a dias em que o Brasil me adoece. Aqueles roupas que fariam Damares ter um troço, o suor, o canto de olhos fechados, as peles que se tocam. Eu queria que Pedro Pedreiro estivesse aqui, ou que todo brasileiro tivesse uma folga no Carnaval e todos os direitos assegurados pela Constituição. 

Mas defendo, com a mesma convicção, que a balbúrdia precisa continuar. Defendo o samba, a Paulista fechada, a regulamentação das festas nas universidades, o funk, o carnaval, e toda e qualquer forma de ocupação de espaço público que proporcione, além de desaforo, encontro e vida nesses tempos difíceis. 

Vivamos a arte do encontro, porque a solidão já é considerada uma epidemia com impactos na saúde física e mental. Enquanto isso, nossos gestores desvalorizam as festas tradicionais e cercam espaços de convivência. As cidades que transbordam gente que não interage com gente. Viva o encontro; nas feiras, praças, festas, festivais, praias e Prainhas. Na Peruada, onde estudantes da universidade pública mais reconhecida do país se encontram sob o mote que pede juiz imparcial e estão do mesmo lado da história. 

O encontro é embalado, é claro, pelo funk que faz rebolar mesmo os que vão vestidos de Belchior. Viva toda e qualquer música popular brasileira. Gostando ou não do funk, é por conta dele que disputamos o Grammy Latino, com os 150 batimentos por minuto do DJ Renan da Penha – preso há 6 meses por posar com uma arma de papelão enquanto os milicianos estão no poder. 

Quando perguntado em entrevista sobre as pinturas e roupas aderidas pelo grupo Secos & Molhados, Ney Matogrosso sintetizou suas pretensões: “A primeira intenção era que não soubessem quem eu era. O resto era desaforo”. 

Hoje é 18 de outubro de 2019 e, ao contrário do que me foi dito, não vai ser nossa última festa.