Três trajetórias de resistência, sobrevivência e transformação

Estudantes trans contam suas experiências para chegar e frequentar um espaço acadêmico, público e renomado 

Por Daniel Terra

Dimitri em frente ao prédio do curso de Letras, local onde estuda. Créditos: Daniel Terra (fotografia) e Beatriz Crivelari (arte)

“Se eu não estiver nesses lugares, não vai ter mais ninguém”

Aos 15 anos Dimitri foi internado em um hospital psiquiátrico, após se assumir como homem trans. Tinha terminado um relacionamento e enfrentava outros problemas envolvendo seu nome social na escola. “Naquela época, com 15 anos, eu nunca pensava que ia chegar aos 18. Pensava que teria me matado antes. Era um pensamento muito forte na minha mente e chegar à faculdade para mim foi um marco”. 

As aulas na Letras começaram exatamente quando completaram dois anos do internamento. Para Dimitri, foi um momento importante que o levou a refletir o quanto ele sobreviveu, tudo que teve de enfrentar para estar na universidade. Seus pais desejavam que o filho fizesse USP, independentemente do curso. Nesse quesito, teve muito apoio da família, mesmo tendo dificuldades com assuntos que tocavam a sua identidade de gênero. 

No final do ano passado, estava preparando-se para o vestibular, na mesma época em que o Bolsonaro venceu a eleição presidencial. Atualmente ele afirma que sempre sentiu a USP como ambiente mais seguro do que o mundo lá fora, baseado mesmo no rótulo de que as pessoas da universidade são mais abertas. “É uma questão de eu aguentar esse ambiente tão hostil que vai ser o Brasil nos próximos quatro anos”.

Dimitri é muito ativo nos movimentos estudantis dentro da universidade e mesmo com alguns questionamentos vindos de pessoas próximas do porquê se envolver tanto, ele reforça não só a causa política – ainda mais diante da conjuntura atual do país – mas sobretudo a causa trans. “Se eu não estiver nesses lugares, lutando pelas minhas causas, não vai ter mais ninguém.”

Guilherme evitava usar o e-mail USP, que continha seu nome de batismo, para evitar constrangimentos. Créditos: Gabriel Oliveira (fotografia) e Beatriz Crivelari (arte)

“A mulher teve a pachorra de me responder: oi, fulana”

Ao contrário de Dimitri que acaba de começar essa jornada no ensino superior, Guilherme formou em 2017 no curso de Biologia. Sempre soube que era um menino, mas foi no segundo ano da universidade que decidiu assumir sua identidade, contar para os amigos e familiares, e começar a transição. 

Em aspectos estruturais da faculdade, ele sentiu a assistência insuficiente. Teve sorte com os amigos e professores, mas ocorreram inúmeros incidentes quanto ao seu nome social. “Senti muita falta de apoio, muito descaso”. Quando ia comer nos restaurantes universitários, aparecia o nome de batismo e seu  nome entre parênteses. Inclusive, ocorreu em diferentes ocasiões dos amigos de Guilherme riscarem esse nome da lista de chamada, não era o que devia estar ali. Guilherme reforça como os professores do Instituto de Biologia o respeitavam, tratavam pelo nome que assumiu e, se precisasse, também riscavam a lista para colocar o nome correto.

Ainda falando de problemas envolvendo o nome, aconteceu de uma vez Guilherme enviar email para a seção de alunos. Seguindo os protocolos, inseriu o número USP, seu nome e ainda o nome de batismo, entre parênteses, na possibilidade da funcionária ficar confusa. Por fim, assinou. Depois recebeu de volta e-mail falando que o pedido foi efetuado, mas usando o nome de batismo. “A mulher teve a pachorra de me responder: oi, fulana”. Além disso, no período em que estudou na USP o e-mail institucional continha o nome de batismo, o que gerava situações constrangedoras. “Às vezes eu estava conversando com algum professor e eles perguntavam meu email USP e eu falava que não estava conseguindo acessar, e passava um outro”.

O apoio de Luna vem dos amigos e das poucas pessoas trans que também ocupam a Universidade. Créditos: Daniel Terra (fotografia) e Beatriz Crivelari (arte)

“É meu espaço aqui também, sabe?”

Quando questionada sobre a sua experiência com a Universidade, Luna, estudante da Letras, gosta de pensar primeiramente como concebe esse lugar: “Feita pela branquitude e para branquitude, das pessoas cis para pessoas cis”. Nesse sentido, afirma que é um local violento para o seu corpo. Ela enxerga sua relação com a USP como um hackeamento, uma espécie de vírus dentro de um sistema, inserido para corrompê-lo.

Mesmo querendo fugir da discussão da violência, Luna afirma que, querendo ou não, é um fator forte. Em menos de três anos na Universidade, sofreu uma violência física no bandejão central, onde foi deslegitimada por pessoas que presenciaram o ocorrido. “Um corpo trans, preto e periférico vai ser jogado à margem. As pessoas vão duvidar, vão te jogar no estereótipo”. 

Luna entende a sua rotina como uma forma de violência: estar na rua, no transporte público e lidar com a falta de dinheiro são agressões que vão além do ambiente da universidade.

Luna não consegue pensar o que falta para ela, enquanto pessoa trans, sem pensar em mudanças nas estruturas que compõem a USP. Não consegue falar de permanência trans se não existe praticamente nenhum tipo de permanência; pensar em saúde mental trans se não há condições de saúde mental para todos os alunos. “Quando a gente pensa em universidade, a gente não pode pensar em uma universidade que é apartada da sociedade. Ela é fruto da sociedade, ela está integrada à sociedade e ela precisa pensar o bem-estar da sociedade pelo viés do conhecimento, pesquisa, prática e educação”. 

Para Luna, há uma deficiência na organização das aulas, conteúdo e grade curricular. “O modelo francês daqui exclui as discussões de gênero”. Ela vê a necessidade da USP mudar a sua epistemologia, pois as aulas se tornam brutais por não agregar a sua vivência. 

O apoio que ela tem dentro da Universidade é dos amigos que buscam o conhecimento e das poucas pessoas trans inseridas neste local. Para Luna, os debates que começaram dez anos atrás sobre racismo, estão começando sobre gênero. 

“O que me mantém aqui, eu acho que é o ódio. Eu não acredito que essa galera toda tem privilégio a isso e eu não posso ter simplesmente pelo o que eu sou, simplesmente pelas questões que me perpassam. É meu espaço aqui também, sabe? Eu também produzo conhecimento.”

Luna alerta sobre a importância das pessoas saírem dos estereótipos, pois “às vezes as pessoas falam: ah, a causa trans, causa LGBT. O que ‘vocês’ chamam de causa é apenas a minha vida, sabe?”. Ela fala de fugir da concepção de que o cisgênero é naturalizado e o trans, não. Acredita que, para haver o combate da transfobia, deve-se repensar essas naturalizações nos espaços. “A gente vive em uma sociedade transfóbica, racista, elitista. Logo, toda pessoa cis, vai ser transfóbica. Não significa que ela vai praticar a transfobia, mas a construção de subjetividade dela é transfóbica.”