As lutas para entrar, estudar e se formar na USP (parte 2)

Kaio Gameleira, concluindo o segundo ano de graduação na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

Por Mariah Lollato

Foto: Amanda Capuano/ Jornal do Campus

No microuniverso da USP, 70% dos cursinhos oferecidos realiza análise socioeconômica antes de receber os alunos. Os outros 30% não levam isso em consideração porque conseguem atender a todos. Nove dos 11 pré-vestibulares ficam em unidades do Butantã ou da Consolação, em locais que estão entre os de 20 maiores IDHs de São Paulo. 

Kaio Gameleira estudou no cursinho da EACH. Ele mora no Jardim Keralux, comunidade ao lado da USP Leste. Mesmo sendo vizinhos, ele não sabia que ali ficava uma faculdade. Não sabia nem que universidades públicas existiam.

A mãe de Kaio, com quem mora, é empregada doméstica. O pai, ele não chegou a conhecer, não foi registrado. Kaio sempre quis fazer faculdade e fala que descobriu sobre a desigualdade social observando o mundo do qual fazia parte, como nas vezes em que acompanhou a mãe nas casas em que trabalhava. 

“Os espaços dentro dessas casas foram fortalecendo o sentido de perceber que existiam essas diferenças. Teve uma casa que a moça tinha um filho e a minha mãe também cuidava dele. Era uma criança como eu. Quando eu ia para lá, a gente ia brincar juntos. E esse menino, ele tinha tudo. Ele tinha um mundo de brinquedos que eu sempre quis ter, mas minha mãe nunca teve oportunidade de me dar porque não dava pra dar.” 

Kaio conta que sua mãe sempre foi muito sincera: precisava comprar comida, pagar aluguel, deixando claro que “não dá pra comprar o brinquedo”. Kaio diz ter percebido que a patroa podia dar tudo para o filho. “Quem pagava a minha mãe era a moça que dava os brinquedos para ele. Então entendi que existia um buraco entre a minha família e a família dessas pessoas.”

Sonho familiar inédito

Apesar de nenhum dos familiares de Kaio ter ensino superior, ele sempre quis fazer faculdade. Cursou o ensino médio na escola estadual Irmã Annete Marlene Fernandes de Mello, no Keralux. Nas aulas, não se falava sobre vestibular. O pouco de informação que chegava até eles era sobre o Enem, “uma forma de conseguir desconto em particulares”, ele achava. Com universidade pública não se sonhava.

Quando estava no segundo ano do ensino médio, Kaio foi um dos seis selecionados a pedido de um professor da EACH para ganhar uma bolsa de Pré-Iniciação Científica. “A coordenadora veio, me chamou para fora e falou que eu tinha ganhado uma bolsa. O que eu entendi é que eu tinha ganhado um curso de graça da USP. Depois, quando eu descobri que receberia para estudar, foi um choque maior ainda. Porque a lógica sempre foi pagar para frequentar o espaço, e não receber.”

Com a bolsa ele descobriu a USP. Começou a conversar com os alunos e ficou sabendo que o cursinho da EACH existia. No meio do ano, conseguiu se matricular, e teve ali a primeira experiência diferente da dinâmica da escola. Ele só conseguia frequentar o cursinho porque ia caminhando. Além de aulas gratuitas, frequentava eventos e palestras.

Em 2018, Kaio ingressou na USP, passou em Lazer e Turismo na EACH. Chorou com sua mãe no supermercado quando recebeu a notícia. Hoje ele transferiu o curso para Gestão de Políticas Públicas.