“Todos os nossos direitos estão sendo questionados”

Ganhadora do Prêmio USP de Direitos Humanos, Eva Blay discute condição de gênero

Por Isabella Velleda

Professora sênior da FFLCH, Eva Blay construiu sua carreira estudando questões de gênero. Foto: Cecília Bastos/ USP Imagens

Entre alunos e professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), Eva Blay é uma sumidade. Tendo lá adquirido sua graduação, mestrado e doutorado em Sociologia, com enfoque nos direitos das mulheres, a sua carreira a levou a introduzir essa discussão em ambientes que em muito extrapolavam o território da USP, numa época em que o tema ainda era grandemente ignorado.

Passou pelo Senado Federal, presidiu o Conselho Estadual da Condição Feminina do Estado de São Paulo, e recebeu inúmeras homenagens pelos seus feitos, que não cabem todos nessa introdução. Hoje, ela é professora sênior da FFLCH e da Faculdade de Direito, e coordena o Escritório USP Mulheres. Em 27 de novembro, recebe o Prêmio USP de Direitos Humanos.

Incansável, respondeu esta entrevista por áudios via WhatsApp porque o encontro presencial foi impedido por uma queda que lhe quebrou o braço. Prometeu que receberá o Prêmio mesmo de tipoia, além de mandar a foto que ela mesma fez para a entrevista.

O que te levou a fazer pesquisas na área de direitos das mulheres, quando tão poucos estudos existiam sobre isso no Brasil?

Desde criança, eu sempre tive uma grande preocupação com grupos que eram excluídos. Pessoas diferentes, pessoas negras, pessoas que tivessem qualquer dificuldade — ou nós, judeus, que era uma coisa que me afetava diretamente. Eu sempre tive uma preocupação com a igualdade, com os direitos das pessoas. Que elas fossem respeitadas pelo simples fato de existirem. Eu acho que isso foi uma marca na minha vida. 

No colegial, eu sempre tive vontade de fazer estudos sobre essas relações sociais, sobre como as pessoas viviam, mas do ponto de vista da igualdade. Então, uma das primeiras alternativas que surgiu quando eu estava na universidade foi fazer pesquisa. Eu comecei a estudar as mulheres no trabalho: como elas se incorporavam no mercado, como elas recebiam, deixavam de receber. Evidentemente que eu já conhecia, por exemplo, as dificuldades de vida da camada trabalhadora. Mas era uma coisa íntima, quase pessoal, eu me interessar por esse tema. Eu sei que eu não fui influenciada pela literatura, mas ao contrário, aí que eu fui buscar a literatura sobre esse assunto. 

Qual a importância dessas pesquisas para a elaboração de políticas públicas?

Deveriam ser fundamentais. Quando nós, feministas, fazemos estudos — ou quando nós, pessoas das comunidades excluídas, fazemos pesquisas e descrevemos os problemas — evidentemente que quem está fazendo política deveria usar esse instrumento para elaborar políticas públicas. Se você chega à conclusão de que as mulheres ganham menos do que os homens, ou que as mulheres negras são mais violentadas do que as mulheres brancas, isso deveria ser usado nas políticas públicas. Porque nós, sociólogos, fazemos a investigação e podemos apontar soluções, mas a aplicação das soluções é um trabalho político. Por isso que, aliás, eu acabei me interessando pela política. 

No livro “50 Anos de Feminismo”, você afirma que o movimento de mulheres do Brasil é um dos mais estruturados da América do Sul. Por quê?

Nós chegamos, no Brasil, a uma organização muito vasta e conseguimos, por exemplo, criar um Ministério da Mulher, Conselhos da Condição Feminina, e vários movimentos sociais que são nacionais. A partir desses movimentos, nós criamos estruturas institucionais em quase todos os estados. O primeiro foi o Conselho da Condição Feminina, aqui em São Paulo, do qual eu fui a primeira presidenta. Depois, criamos a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, no governo Montoro, que também foi uma instituição fundamental. A partir disso, foram sendo expandidas por todo o país uma série de alternativas. 

Quando você pega a Lei Maria da Penha, é consequência disso. Veja que não ficou só nos movimentos. Depois a gente passou a ter, também, influência direta na Câmara, no Senado, através de grupos organizados, acompanhando a legislação. Tudo isso mostra uma estrutura. Não estou dizendo se é boa ou se é má. O que a gente mostrou foi que isso foi conquistado, implantado. E evidentemente que a situação do conhecimento sobre condição de gênero passou a ser muito mais visível. 

O fato de você, por exemplo, ser jovem, estudante e estar no começo de uma carreira, já indica que você está recebendo um conjunto de informações que eu não recebi. Mas eu fiz parte de um processo de criação dessa institucionalização, ou dessa estrutura. Essa é a diferença.

Qual a relevância do Prêmio USP de Direitos Humanos, visto que, na atualidade brasileira, há quem diga que defender direitos humanos é defender bandido?

A importância desse prêmio está justamente em esclarecer que, primeiro, todas as pessoas têm direitos. Ninguém está defendendo bandido pela ação do bandido. Mas nós estamos defendendo o direito das pessoas de não se tornarem bandidos. Dar oportunidades desde que a pessoa nasce. Homens, mulheres, transsexuais, tanto faz. Esse prêmio, eu estou enxergando como uma oportunidade de chamar atenção neste momento em que todos os nossos direitos estão sendo questionados, em que a condição de gênero está sendo muitíssimo mal-interpretada. 

Ganhar esse prêmio, para mim, é uma oportunidade de mostrar como nós vivemos em situações de gênero diferenciais. Quer dizer, a nossa condição de gênero tem que ser observada e analisada principalmente pelas políticas públicas. 

Para exemplificar, vamos voltar ao problema do salário, que é o mais simples. As pessoas que fazem as mesmas atividades deveriam ganhar salários iguais, mas não ganham. Mas não são todas as mulheres que ganham menos do que os homens, aqui entra a condição de gênero. Entre as mulheres, você tem as brancas, as negras, as de qualquer outra etnia. Você precisa analisar todas essas características, e ver se são mulheres que moram mais na periferia, mais no centro. São variáveis que você só consegue observar quando se analisa a condição de gênero. Se você ficar só na condição de sexo biológico, não há essa informação. 

Agora, nós estamos vivendo num governo federal que é absolutamente ignorante dessa dimensão. Ignorante. Não entendem o que nós estamos chamando por gênero. Eles estão colocando uma ideologia que é absolutamente nada científica, e não é o instrumental que nós estamos usando na ciência e na pesquisa. Ponto. Pronto. Eu quero chamar atenção para este fato.

Qual o papel da USP dentro de tudo isso?

A Universidade de São Paulo é democrática, é republicana. Ela é científica, e apoia o trabalho científico. A USP está aberta. Então, tanto faz qual é a sua religião, a sua cor, a sua etnia — não importa. Ela está aberta a todos. Isso não significa que ela não tem opção por um grupo ou por outro, mas também não significa que ela vai excluir. 

Digamos, se tem uma freira ou um padre, eles serão aceitos democraticamente, e poderão fazer pesquisa sobre religião também. Não tem problema, desde que façam uma pesquisa científica, objetiva, e que não abordem essa falsa ideia de uma Escola Sem Partido. Porque não existe esse negócio de Escola Sem Partido — o que é isso? Quando você fala em Escola Sem Partido você já está, automaticamente, tomando um partido.